domingo, 11 de novembro de 2012

Antes que tudo se esfume – Rua do Amparo, imediações e histórias da vizinhança


Antes que tudo se esfume - Rua do Amparo, imediações e histórias de vizinhança


Volto à Rua do Amparo, imediações e vizinhança, porque ainda hoje povoam os meus sonhos. O local preferido para muitas das brincadeiras era o que chamávamos de “quatro quinas” e ruas em volta.

As quatro quinas, noutra perspectiva, com a vista da rua "da Montanha"

Da vizinhança, ou melhor de alguns vizinhos eu lembro-me muito bem porque foram figuras marcantes, se bem que nem sempre pelas melhores razões.

Começando do alto e a descer a rua, tínhamos uma família que designávamos pela alcunha de  “Foge à mãe”; o pai era polícia, a mãe doméstica e dois filhos, uma miúda e um miúdo, andavam na escola também mas não me lembro dela ser da minha classe e ele da do meu irmão. O pai era o terror daquela gente, a mulher e os filhos tinham o medo e o susto estampados nos rostos e pouco se davam com a vizinhança. Quando aquela porta da rua se abria víamos ao fundo do pátio a porta da casa, que só era entreaberta. Quando o homem chegava, sempre com cara e modos de poucos amigos, a miudagem tratava de fugir dali de perto. Hoje seria um caso de violência doméstica que devia ser denunciado, pois era evidente que tratava mal a mulher e os filhos.

 Rua do Amparo - de cima para baixo, até à curva
(Nesta foto estão quase todas as casas das pessoas de que me lembro como vizinhas).

Continuando a descer a rua, havia a casa da snra. Luz, uma idosa que tinha com ela uma filha e netos pequenos, de que pouco me lembro. Depois, a casa do snr. Zé da Bárbara e da sua mulher Lurdes, conhecida portanto como a Lurdes do Zé da Bárbara. Era um casal já de meia idade, que tinha duas filhas a Conceição e a Maria Helena, já casadas, e que eram amigas da minha mãe. A Conceição tinha uma filha da minha idade, a Lenita, que era minha amiga. Fiquei muito desgostosa quando os pais e ela se foram para Angola; nunca mais a vi. Pois bem, a casa do Zé da Bárbara era uma casa sempre animada e cheia de novidades, funcionava assim como uma espécie de pensão, pelo que as pessoas iam e vinham. Às vezes eram bons hóspedes, outras nem tanto. A casa, tal como a minha, tinha um pátio e uma escada até lá cima. Entrei lá algumas vezes e as poucas lembranças que tenho é de uma casa escura, que cheirava muito a fritos e cheia de gente. Uma vez, em que andávamos por ali perto da porta a brincar, vimos cair pela escada abaixo uma mulher e a snra. Lurdes que se atirou atrás dela, aos gritos. Pelo sangue que vimos no pátio e pelo alvoroço, apercebemo-nos logo que a tal mulher tinha morrido. Andei muito tempo assustada com esta tragédia que observei. No rés-do-chão desta casa, morava, penso que sozinha, a snra. Luísa, uma velhota já muito trôpega. A casa era escura, muito suja e mal cheirosa como não podia deixar de ser, bem como a velhota, junto da qual não se podia estar muito tempo, coitada, sempre muito enranhosada e fanhosa. Lembro-me dela com uma vassoura de giestas na mão, a varrer com muita dificuldade e às vezes a ameaçar com ela a miudagem que era atrevida. Por cima do snr. Zé da Bárbara, também habitavam algumas pessoas, de que já não me lembro.

Seguia-se a minha porta e a porta do rés-do-chão, onde morava a menina Lurdes, o snr. Né e o filho, Ulisses, família simpática com quem nos dávamos muito bem. O Ulisses era um pouco mais velho que eu, por isso não me lembro dele na escola. A certa altura também emigraram, para Moçambique, e a minha mãe sentiu muito a perda desta sua grande amiga. Veio viver para essa casa a snra. Rosária (viúva) com o filho Abílio, que estudava na Escola Comercial. Esta senhora também se tornou muito nossa amiga.


Onde a rua faz a curva, a minha casa branca, n.º21; duas portas e por cima a janela.

Já quase na curva da rua, vivam as “Penteadinhas”, duas irmãs também já de alguma idade, penso que uma se chamava Emília, da outra não me lembra o nome. A impressão que me ficou delas, é que não eram muito simpáticas, passavam muito tempo à janela, dando conta de tudo o que se passava. A desfazer a curva, estava a casa da Lurditas ( e com esta já são três as Lurdes desta rua), esposa do Zé Almeida da loja do Ferrinho. A Lurditas era outra das amigas da minha mãe, ou melhor, da nossa família, uma vez que a mãe dela, a D. Maria da Luz, tinha sido professora como a minha avó Gracinda, tendo sido elas colegas de curso. A Lurditas (que nunca chamámos de outra forma) tinha dois filhos, o Zézé, e a Lusita, esta bem mais nova que o irmão, pois nasceu quando já eu andava talvez na 4.ª classe. Tornei-me mais tarde comadre da Lurditas porque me escolheu para ser a madrinha de Crisma da Lusita. A casa da Lurditas era uma atracção para nós, tinha dois pisos e um quintal na muralha, um pouco mais espaçoso que o nosso. Gostava especialmente de comer na casa dela porque me sabia muito bem a comida, apesar de não haver muito asseio naquela cozinha nem no resto, ao fim e ao cabo… A Lurditas era muito boa pessoa mas não era um primor de dona de casa, e logo lhe calhou por marido um janota, um galanteador, um jogador, que sempre queria andar muito bem arranjado e fazer vida de rico. Ora ela era muito pouco o ideal de mulher para ele, daí se desentenderem tanto, de tantas discussões e brigas sérias, tareias de ficar com o olho roxo e outras nódoas negras, que justificava à vizinhança dizendo que tinha caído da escada. Até nós que eramos miúdos sabíamos o que se passava, mas nem por isso ela contava outra história. Aquele casamento, segundo me apercebi mais tarde, foi um casamento de conveniência para ambas as partes, ou seja, para ela porque não queria ficar para tia como parecia estar a acontecer e ele que viu ali um bom partido porque ela era pessoa de posses. Ele trabalhava como empregado de balcão na loja do tio, o snr. Joaquim, na rua direita, mas comportava-se como se fosse o dono. De facto veio a sê-lo, mas muitos anos mais tarde. A casa onde moravam era de uma tia dela, a snra. Branca do talho, que depois lhe deixou em herança. Como tinha dois pisos, na parte correspondente ao 1.ºandar, morou também uma senhora chamada Nazaré, com dois filhos estudantes, a quem a Lurditas o subalugara.

Eu não gostava nada de ir à loja do Ferrinho por causa do Zé Almeida, que era todo salamaleques e às vezes inconveniente. O tio, o snr. Joaquim, era um homem entroncado e baixinho, mas com muito bom ar, que quase sempre estava lá para os fundos da loja. De vez em quando percebia-se que chamava à pedra o sobrinho. Anos mais tarde, a Lurditas passou a estar na loja também, bem como os filhos. O casal morreu já, os filhos ainda lá estão com as respectivas famílias, têm outra loja, de frutas e legumes, um restaurante e uma casa, na mesma rua.





Este portão verde, o n.º 13, era a entrada para a casa da minha comadre Lurditas, ao lado, o n.º 15, a casa das "Penteadinhas"


Ainda vou só no lado direito da rua, para quem desce, e ainda não cheguei ao fim…



O fim da Rua do Amparo

Bem, no rés-do-chão do prédio da Lurditas viviam os “Solinhos”, outra família de que seria difícil esquecer-me. O “Ti Solinho” (que eu tenho uma ideia de ser parente da menina Lurdes que vivia no rés-do-chão do meu prédio)  era carpinteiro, a mulher, snra. Céu, fazia limpezas e tinham dois filhos rapazes (não me lembro dos nomes) e duas filhas a Madalena e a Elisa. A Madalena era um pouco mais velha do que eu e a Elisa já era rapariga feita, era esta que me ia contar histórias, para eu conseguir comer.



O rés-do-chão onde morava a família "Solinho", portão cinzento, baixo.

A família vivia muito mal, a casa era muito pobre e sem condições, como aliás quase todas as da rua, principalmente as de rés-do-chão. O homem era bêbado, berrava, insultava e batia na mulher e nos filhos. Porém, se estava bem disposto, organizava brincadeiras para a miudagem da rua, como por exemplo, sentava-se num banquito à porta dele, espetava um pau comprido no chão e, numa fenda que fazia na extremidade, entalava uma moeda de um tostão ou dois tostões, depois mandava-nos alinhar a todos lá ao cimo da rua, encostados à parede e quando apitava desatávamos a correr rua abaixo e o que primeiro chegasse era quem retirava a moeda do pau. Eu gostava destas correrias, acho que corria bastante e se calhar alguma vez cheguei primeiro, quem não achava graça era a minha mãe, não só porque eu tinha estado doente como porque achava que eu assim parecia uma maria-rapaz.

Seguia-se a casa da “Jangita”,  que vivia no primeiro andar; sei que era casada, mas não me lembro do marido e quase tenho a certeza que não tinha filhos. Tal como as “Penteadinhas”, passava muito tempo à janela, mas sempre bem aperaltada. No rés-do-chão, viveu a Eduardinha, costureira, que tinha sido a mestra da minha mãe. Lembro-me muito bem dela, de espreitar pela janela e ver a sala onde estavam as aprendizas, a mesa grande, o ferro aceso com brasas, muitos tecidos, roupas já prontas e muitas linhas pelo chão. Eu disse que “viveu”, porque acho que a Maria dos Anjos foi viver lá para a rua já depois da Eduardinha ter desaparecido, mas não tenho a certeza.

Chegava-se à esquina com a casa do “Beira-Baixa”, ou melhor, da mãe dessa “figura”, que vivia no primeiro andar e o dito no rés-do-chão, com entrada já pela Rua de S. Vicente. Penso que seria a família a quem a palavra “miséria” mais se aplicaria, porque de facto a sua existência era miserável, custava a crer que seres humanos pudessem viver daquela maneira. Penso que a mãe, que vivia no primeiro andar, se chamava Eufrásia, era uma mulher pequena e magra, que muito se desgostava com aquele filho beberrão. Não sei se vivia com ela uma filha, não me lembro.

O “Beira-Baixa” era um trolha, que passava mais tempo bêbado do que a trabalhar. E tinha mau vinho porque insultava toda a gente que passava. A mulher, mal tratada, estava invariavelmente grávida, as crianças nasciam e morriam pois seria quase milagre que sobrevivessem naquelas condições. No entanto algumas sobreviveram, lembro-me de uma miúda a quem chamaram Elisabete, que tinha uns olhos muito vivos mas, coitadinha, acabou por morrer também com uma doença a que chamávamos “a tinha”. A miúda já teria uns três ou quatro anos, pois lembro-me de que brincava ali na rua também. As outras mães não gostavam muito que brincássemos com ela porque a doença, diziam, era contagiosa. Lembro-me da cabeça da miúda ir ficando muito esquisita, quase sem cabelo e com um aspecto muito ruim. Dos outros que nasceram depois, penso que sobreviveram dois, um rapaz e uma rapariga, porque muitos anos mais tarde, aquando de algumas idas lá, encontrei a mulher (já viúva há muito tempo) e esses dois filhos, ele igualmente bêbado como fora o pai e a rapariga, pelo que soube, não andaria por muitos bons caminhos. Entretanto, já viviam no primeiro andar, onde vivera a sogra.

Ao tal rés-do-chão em que viviam, não se poderia chamar uma casa, aquilo era um buraco para onde se descia por dois ou três degraus, um corredor que não tinha mais de um metro de largura mas onde estavam amontoadas enxergas de palha e farrapos que tinham de se pisar para alcançar a parte mais larga do buraco, em terra batida e que era indescritível. Além do negrume das paredes, por força do fogareiro, ali tudo era sujo e nem se sabia o que se estava a pisar além da terra. Entrei lá precisamente por ocasião da morte da Elisabete e lembro-me que foi difícil ao padre entrar e conseguir-se retirar o caixãozito para fora.

Estas portas e janela envidraçadas, debruadas a vermelho, foram a antiga morada da família do "Beira Baixa". A porta mais pequena era a de entrada. Por cima vivia a mãe. Hoje está tudo mudado, arranjado.

Mudando de lado da rua, e no sentido ascendente, lembro-me de menos pessoas: em frente da “Jangita”, vivia a Sãozinha, cunhada da Lurditas, que tinha dois miúdos. A casa era grande e quase fazia a curva toda. O marido era mais alto e forte que o Zé Almeida, não me lembro do nome dele. Ela era muito coscuvilheira, tal como outras dali, e tinha muita inveja da cunhada e das amizades que a cunhada tinha, nomeadamente com a minha mãe. A certa altura mudaram-se para outra terra (Coimbra?) mas nós já ali não morávamos. Em frente do Zé da Bárbara vivia um homem já velhote e solitário, a quem chamávamos o “Fernando dos penicos”, isto porque o homem, pela manhã, abria a janela e atirava para a rua a penicada da noite, não se importando se passava alguém ou não.

Seguiam-se as traseiras de uma casa que tinha entrada pela Rua de S. Vicente, que para ali tinha as portas do quintal e de umas arrecadações de lenha. A casa era a da snra. Arminda dos rebuçados e dos bolos. Continuando a subir, lembro-me de mais uma ou duas casas mas já não de quem eram os moradores. Seguia-se depois a Rua da Trindade, que era a rua da minha avó Gracinda.

Voltando a situar-nos na casa do “Foge à mãe”, e agora a subir, também havia mais casas, mas dos moradores só me lembro da “Rosa do rato”, viúva com, salvo erro, dois filhos e duas filhas, que era uma mulher alta, desembaraçada, sempre de mangas arregaçadas mesmo às vezes no Inverno, e língua afiada. Lembro-me das duas filhas (uma alta outra baixa, esqueci os nomes…) e do filho a que chamavam “Mandito” que foi trabalhar para o Banco onde trabalhava o meu pai.

Nunca tivemos grande aproximação a esta família, era somente a que a boa vizinhança obrigava.

Lá ao cimo da rua, a casa (ou casas?) a cujas paredes nos encostávamos antes do Solinho dar ordem de partida para a corrida, moravam pessoas de que me esqueci completamente, apenas recordo que havia miúdos, mas mais nada.

Para o lado esquerdo, seguia-se a rua nova, sendo que das casas de que melhor me lembro eram a do “ti Pinto”, logo à esquina do lado direito, tipo vivenda a que se acedia por uma escada, e que era pai da minha amiga Dulce Helena.

O Pinto era pintor, bebia copos e provocava desacatos violentos, tal como os outros. A mulher, a snra. Albertina, era quem recolhia as viandas da vizinhança, porque criava porcos lá para “reinalda”. A Dulce Helena (que todos chamavam por “Chilena”, abreviando os nomes…), tinha só irmãs: a Xaxão a Alice, a Mª Helena, a Létinha . A “Chilena” era a mais nova e havia até grande diferença de idade entre ela e as mais velhas. Uma outra irmã, só por parte do pai e mais velha ainda, vivia na Venezuela e era, por parte da mãe, meia-irmã da menina Lourdes que vivia no rés-do-chão do nosso prédio. Curiosamente, esta também se chamava Celeste e vim a conhecê-la quando veio de Caracas visitar a família e trouxe uma filha, ainda bebé.
Nós já não morávamos ali mas mesmo assim, tendo em conta que a minha mãe tinha sido a maior amiga da meia-irmã (já emigrada), ela confiou-nos a bebé enquanto precisou de dar algumas voltas, tratar de alguns assuntos. Ainda me lembro dos cuidados que tinha com a criança, dos objectos que trazia e eram indispensáveis para higiene, alimentação e entretenimento, as explicações detalhadas para tudo, os horários, etc., a ponto de termos tomado notas escritas para não falhar nada e também porque ela já falava muito mais espanhol do que português e tudo teve de ser repetido para ver se entendido. Na altura tudo isto foi novidade, uma vez que não víamos ninguém, com filhos pequenos, proceder assim, não tenho dúvida que naquela época, na Venezuela, já se tinha avançado bastante na pediatria e na puericultura. Também não duvido que se já houvesse telemóvel, ela não tinha parado de ligar a toda a hora… mas, como é sabido, nem telefones havia à disposição.



Antes que tudo se esfume - Escola Primária


Antes que tudo se esfume – Escola Primária


A minha cura foi declarada no mês de Maio de 1956, passados dezoito meses após ter adoecido.

Recordo-me do primeiro dia que saí à rua depois da doença, o tempo era de Primavera mas mesmo assim a minha mãe, à cautela, agasalhou-me com um xaile de lã que me atou em cruz atrás das costas para não o deixar cair e recomendou-me que não me afastasse dali da porta. Mal a apanhei distraída, subi a correr pela rua da montanha acima e dei volta a todas as ruas que conhecia, evitando passar pela rua da minha avó, não fosse o caso de me verem da janela e me travarem no meu passeio. Lembro-me da sensação das pernas a tremer, do coração a bater e de não me importar nada com isso e só querer andar, andar e ver tudo. Claro que cheguei cansada e a minha mãe só não me deu uma tareia porque ficou alarmada demais.

Mas o tempo foi avançando e fui ficando mais forte e mais confiante.

Em Agosto fiz os sete anos e em 7 de Outubro entrei finalmente na Escola Primária do Espírito Santo.

Escola Primária do Espírito Santo
Mas ainda era cedo para confiar totalmente nas minhas forças, por isso fui sempre muito vigiada e quando a minha mãe me levou à Escola pela primeira vez a professora foi logo muito avisada de que eu não podia brincar no recreio como as outras crianças, que não podia correr, que não podia apanhar sol, etc., etc.

Do primeiro dia de aulas ficou-me uma decepção: a professora, D. Carmelina, ao determinar os nossos lugares nas carteiras (as antigas secretárias de madeira) fez-me sentar, com outra miúda, na penúltima da primeira fila. A explicação que ela deu foi que as meninas mais altas tinham de ficar mais atrás… isto sempre me surpreendeu porque, pequena como sou e acho que sempre fui, pelo visto, na 1.ª classe, eu era das mais altitas…

Outra situação que ao princípio me deixou desconcertada era o facto de eu não ser a única na classe com este nome, nome de que, por acaso, não gostava nada. Quando tive consciência de que este meu nome se devia à escolha da minha madrinha, que também se chamava assim e que a minha mãe teve de aceitar porque enfim, era de tradição a madrinha escolher, fiquei muito aborrecida, para mais que a minha mãe já teria em mente outro nome de que eu gostava muito mais, mas a chegada dos tios brasileiros que ela convidou para padrinhos, veio alterar tudo.

Bem, estava eu a contar que fiquei surpresa com a existência de outra miúda com o meu nome e a surpresa não foi só essa; é que, a tal miúda tinha uma irmã gémea, a Dulce Helena, e a minha melhor amiga e vizinha, também se chamava Dulce Helena. Esta duplicação dava azo a várias peripécias, a professora chamava pelo meu nome e levantávamo-nos duas, e com a minha amiga e a outra Dulce Helena, sucedia o mesmo.

Nessa classe, havia também outra miúda minha amiga, que se chamava Antonieta, nome esse que era precisamente o que a minha mãe me teria dado, caso tivesse sido ela a decidir e de que gostava muito. Sentia-me muito infeliz quando pensava que eu poderia também chamar-me Antonieta e não aquele meu nome que detestava.

De facto, durante anos, detestei o meu nome, soava-me muito mal e não gostava de ouvir chamarem-me, mas claro, como tudo nesta vida vai passando, essa malquerença ao meu nome também me passou. As minhas amigas também passaram, ou seja, perdi-lhes completamente o rasto. As gémeas, chamadas de “gémeas da mata” porque eram filhas de um guarda-florestal, nunca mais vi, as outras também vi pouquíssimas vezes mais.
Felizmente, os quatros anos de escola primária decorreram sem incidentes, tanto a nível da aprendizagem como da saúde. Acho que fui boa aluna, fiz os exames da terceira e da quarta classes e o exame de admissão ao Liceu e à Escola Técnica. No exame de admissão ao Liceu é que tive o primeiro grande desgosto escolar, porque reprovei. Como não me tinha inscrito para o exame de admissão à Escola Técnica, a minha mãe teve de pagar a multa para eu fazer o exame, que correu bem e entrei então depois na Escola Comercial e Industrial. Abreviei aqui os acontecimentos, mas talvez volte ao  assunto mais tarde, para expor, enquanto me lembro, tudo o que realmente aconteceu. É que, comecei a vida escolar com uma decepção em relação à professora primária e terminei-a de igual modo, se bem que durante o decorrer dos quatro anos escolares a professora me tenha cativado. Por isso, a última decepção foi mesmo a mais marcante, não esperava dela a atitude que tomou, tanto em relação a mim como a mais alguns alunos. Os pais também não gostaram nada. E sem dúvida que a minha reprovação na admissão ao Liceu, teve tudo a ver com isso.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Antes que tudo de esfume - Entre os quatro e os dez anos


Antes que tudo se esfume - Entre os quatro e os dez anos


A penúltima casa onde vivi, situava-se na Rua do Amparo, rua esta que era a entrada para a judiaria, e muito próxima portanto da rua onde nasci.

Rua do Amparo

Como se vê, a rua é muito estreita na parte onde se situava a minha casa, formando uma curva acentuada que vinha desembocar nas Quatro Quinas ou seja, no cruzamento com as ruas de S. Vicente e de São Vicente de Paulo (esta, para nós, era a rua da montanha).
As Quatro Quinas

Para o lado oposto, a rua ia alargando e subindo, bifurcando à direita para a Rua da Trindade e à esquerda para a rua que nós chamávamos de Rua Nova, que mais parecia um largo, que por sua vez tinha outras duas saídas, uma à direita para a Quelha (hoje denominada Travessa do Rato), que vinha dar à Rua da Trindade, outra à esquerda que descia para o que chamávamos de bairro do Poço do Gado, ou seja, para uma zona pouco recomendável da cidade, por ser a zona das meretrizes. Tudo isto, ou seja, a dita Rua Nova e o Poço do Gado, são afinal extensões da Rua do Amparo. Do Poço do Gado chegava-se ao Largo de São Vicente, para onde dava a frontaria da casa da minha avó, bem encostadinha à parede lateral da Igreja. A minha avó vivia no 1.º andar e a casa dispunha, nessa frontaria, de duas janelas e uma pequena varanda a meio, entre elas. Do lado da entrada, pela Rua da Trindade, mais quatro janelas.


Rua da Trindade

 Largo de São Vicente - A casa da minha avó
Voltando à casa, ou melhor, ao prédio da Rua do Amparo que, como se pode ver na imagem seguinte, é um das mais bem conservados, foi nossa morada até aos meus 10 anos.
Rua do Amparo (antes da curva à esquerda, prédio branco à direita,nº 21)

Cabe aqui referir que o prédio se enquadra na tipificação das casas judaicas, ou seja, prédio de um só piso, com uma porta estreita para um pequeno pátio e com escada de acesso à habitação e outra porta mais larga ao lado, no piso térreo, que seria a do estabelecimento comercial ou oficina. Nós ocupávamos o 1.º andar que só tinha, para a rua, unicamente aquela janela e, no piso térreo, ou rés-do-chão, transformado em habitação com certeza há muitos, muitos anos, morava outro inquilino. Ao contrário desse rés-do-chão que era pequeno e escuro pois não tinha qualquer outra entrada de luz além da que recebia da porta, o 1.º andar era bem diferente tanto em tamanho como em luminosidade. De facto, virada para a rua, só havia aquela janela, que era a da sala e portanto o quarto interior que lhe ficava contíguo recebia pouca luz. Esse quarto tinha porém duas entradas, uma pela sala e outra pelo corredor, facto esse que fez com que a minha mãe o dividisse em dois, onde a família se acomodava. Para as traseiras, a situação era outra, quase parecendo existir outra casa, ou melhor, outro apartamento, dentro daquele. Tínhamos a cozinha à direita de quem entrava em casa, à esquerda um corredor que levava à sala e quarto, e em frente da porta estendia-se outro corredor com dois níveis de soalho, situando-se à direita mais uns dois quartos, uma sala e outra divisão que servia de cozinha. Estando o prédio praticamente encostado à Muralha (para a parte de dentro), os muros de granito formavam ali uma espécie de quintal, não muito largo, que se estendia ao longo de toda a parede traseira. A nossa cozinha tinha uma saída para esse quintal e a cozinha do fundo, também, e havia janelas nos tais quartos a dar igualmente para o quintal. Como era vulgar neste tipo de casas, não havia instalações sanitárias, o que havia era uma pia de despejos no pátio da entrada, bem atrás da porta da rua, que servia tanto a nós como à vizinha do rés-do-chão, uma vez que a habitação dela tinha uma porta interior de acesso a esse pátio. Para ela o acesso era mais fácil do que para nós, que tínhamos de descer um bom lance de escadas com baldes ou alguidares cheios, para despejar.

 Traseira da casa da Rua do Amparo

Na nossa cozinha, lembro-me de existirem, à direita, duas portas que davam para arrecadações (despensa e arrumo de lenha, carqueja e carvão), na parede em frente, estava o grande fogão de lenha e do lado direito deste existia um vão onde a minha mãe tinha uma espécie de bancada. À esquerda do fogão estava a porta para o quintal e no recanto também à esquerda estavam a mesa, as cadeiras, umas prateleiras de madeira pregadas nas paredes e um armário, onde se penduravam e guardavam louças. Em cima desse armário lembro-me bem que estava a telefonia.

Nunca morámos sozinhos nesta casa. Os meus pais, ou melhor dizendo, a minha mãe, aproveitou o facto de a casa ser grande para subalugar e assim equilibrar melhor o orçamento da família que começou, nesta época, a ser problemático. Acho que os grandes problemas da minha família começaram precisamente quando já vivíamos nesta casa mas, sobre essa má fase (que se prolongou pelo resto da minha infância e juventude), não vou aqui adiantar mais nada, apenas que me apercebi dela bem cedo, talvez por volta dos meus quatro ou cinco anos. Foi também aos cinco anos que adoeci gravemente o que me obrigou a ficar de cama durante um ano e meio (1954 a 1956). Estando de cama, a minha mãe retirou-me do quarto e mudou a minha camita para a sala, de frente para a janela, de onde me chegavam todos os sons de rua que eu passei a identificar facilmente. Não havia riso, choro, ralho, conversa, correria, passos que eu não soubesse de quem eram, assim como sabia bem quem entrava em casa e subia a escada, desde o médico, ao enfermeiro (que vinha quase diariamente) ao meu pai, à minha tia, avós, tias do Alvendre, lavadeira, etc. Não vinham muito a casa os miúdos e miúdas da vizinhança, por causa do perigo de contágio, que de facto existia. Também o meu irmão estava proibido de se chegar ao pé de mim, isto na fase mais aguda da doença. Porém, eu também tinha sido contagiada, bem como outras crianças que comigo andavam no Centro, outras escaparam, como foi o caso do meu irmão. Eu devo ter sido o caso pior porque fui a que demorou mais tempo a curar-se.

Desse período tenho lembranças boas e más; as boas relacionavam-se com as visitas rápidas que o meu pai me fazia (por serem em horário de trabalho), mas que eu ansiava porque ele vinha mimar-me e trazia-me sempre um presentinho, normalmente um daqueles livrinhos de histórias muito pequenos, que eu adorava. Já juntava as letras e conseguia ler alguma coisa porque antes, já andara na “Escola Paga” e no Centro.

“Escola Paga”: não se tratava de uma escola, claro, era simplesmente uma casa onde uma rapariga vizinha recebia os miúdos da vizinhança que ainda não tinham entrado na Escola Primária, para lhes ensinar as primeiras letras, as primeiras contas. Levava-mos de casa um banquinho de madeira, uma ardósia e respectivo ponteiro e o lanche. As mães pagavam qualquer coisa à rapariga, daí o chamarmos à casa dela a “Escola Paga”. Depois fui para o Centro (uma espécie de jardim de infância) que ficava ao pé da Igreja da Misericórdia. Aí passávamos o dia, almoçávamos e lanchávamos e pelas 17.00 h saíamos. Tínhamos o nosso bibe, o nosso cabide, o nosso lugar na mesa. Meninas numa sala, meninos noutra, brincadeiras separadas. Depois do almoço, cada uma sentada na seu lugar à mesa e depois destas terem sido esvaziadas e limpas, deitávamos a cabeça em cima dos braços apoiados no tampo e era suposto que dormíssemos uma sesta. Corriam-se as cortinas e a irmã que nos vigiava não queria ninguém de olhos abertos, a ordem era para dormir. Lembro-me que não dormia, embora tivesse medo de abrir os olhos, mas de vez em quando abria e observava algumas que dormiam e outras não, tal como eu. Recordo-me da Elvira, uma miúda rebelde, que era sempre admoestada e castigada e que, claro, também não dormia, mas ao contrário de mim que ficava muito quieta, ela ficava irrequieta.

Entretanto, afastei-me do que estava a relatar, as boas lembranças, em que também incluo outras aprendizagens que ia fazendo sozinha, como saber ver as horas no relógio da sala, que me ficava mesmo na frente. Por ordens médicas, a minha mãe tinha de me medir a febre várias vezes ao dia e registar num caderninho, então quando me colocava o termómetro debaixo do braço, dizia-me para a chamar quando o ponteiro grande tivesse chegado a tal número. Isto irritava-me muito porque eu não queria que ela me dissesse assim mas antes, “quando for um quarto para as quatro ou oito e dez” pois eu já sabia muito bem ver as horas. Então quando chegava a hora eu berrava logo “já é um quarto para as quatro”, etc… Outra coisa boa eram as histórias que me contavam. Eu quase não comia, juntava tudo no canto da bochecha e, invariavelmente, vomitava. A minha mãe e o resto da família já não sabiam o que fazer, para mais que grande parte da cura dependia de uma boa alimentação. Então o contarem-me histórias ajudava um bocado a que eu me distraísse e permitisse que alguma coisa chegasse ao estômago. Por exaustão, a minha mãe acabou por contratar uma moça, filha do Solinho,(que tinha o mesmo nome que eu) que vinha contar-me histórias ao mesmo tempo que me enfiava pela boca abaixo mais uma colherada.

As más lembranças eram as alturas de febres altas, da prostração, das injeções quase diárias que o enfermeiro snr. Júlio me ia dar e já nem sabia onde, pois as minhas nádegas magras estavam todas picadas, das dores de estômago por vomitar tanto, do amargo das grandes pastilhas da lata da Roche que tinha de engolir, das visitas do médico Dr. António Júlio que me auscultava com aquele objecto frio nas costas e no peito, dos horríveis xaropes caseiros que me faziam engolir e que só o cheiro de quando os faziam já me fazia vómitos, da comida de uma maneira geral que me enjoava, de não me poder levantar para brincar com os outros que ouvia na rua, de ficar muito infeliz quando me apercebi que eles iam começar a Escola Primária e eu não. Aconteceram também alturas de pânico, quando a febre subia imenso e a minha mãe, desesperada, pegava em mim ao colo, toda embrulhada e corria para o Montepio, onde o médico dava consulta. Então ele metia-me na radioscopia (era assim que a minha mãe dizia) que, penso hoje, seria uma forma de fazer um RX uma vez que era encostada a uma grande chapa que parecia de ferro, fria, enquanto o médico dizia para não respirar.

De uma dessas vezes em que fui levada à pressa, nevava imenso e a minha mãe embrulhou-me em tudo o que tinha de agasalho desde camisolas a cobertores e, ajudada por uma prima do meu pai, a Julieta, que estava lá ocasionalmente, entrou no Montepio comigo nos braços. O médico assim que nos viu deu-lhe um ataque de fúria e berrou para a minha mãe que ela era uma irresponsável por me ter levado lá com aquele tempo gelado que tanto me podia afectar. A minha mãe só chorava e ele dizia-lhe que mesmo que me visse vinte vezes ao dia não me podia curar e que se eu tinha piorado devia tê-lo mandado chamar e não ter-me levado lá com aquele tempo. É certo que ouvi depois contar este e outros episódios ao longo da minha vida, mas tenho, desta cena, algumas lembranças, apesar de dizerem que eu delirava com a febre.
Fica a foto que eu acho que deve ter sido tirada pouco antes de adoecer:
Lembro-me que chorei porque não queria tirar a foto, sabe-se lá o porquê… então o fotógrafo deu-me dois bonequinhos, um azul outro rosa e depois disse-me que ia colocá-los um de cada lado, por baixo do vestido, que era para me protegerem. então acalmei e saiu a foto. Tenho a ideia de o vestido ser rosa muito claro.



Antes que tudo se esfume - Dos três primeiros anos de vida


Antes que tudo se esfume - Dos três primeiros anos de vida


Começo por dizer que fiz um rascunho do que pretendia escrever ao abrigo deste tema e, dado que me fui apercebendo que afinal ia ser um bocado longo e povoado de fotos, resolvi dividi-lo em partes, Assim, repetirei sempre o título principal, “Antes que tudo se esfume”, acrescentado de subtítulos. Provavelmente não vou publicar todos no mesmo dia, para não tornar “a coisa” tão pesada.

Para começar, esta primeira parte será dedicada aos meus primeiros três anos de vida, isto porque, ultimamente, penso muito nos meus anos de infância e juventude, passados na minha terra natal. Lembro-me de algumas casas onde vivi, de ruas, episódios, situações, pessoas e, muito também, sentimentos e emoções experimentados. 

Com o que escrevi no texto intitulado “Meados do séc. XX”, já deu para entender que ando assim a modos que saudosista; não sei se é isso, ou melhor, se é só isso, ou antes um sintoma de velhice, de senilidade…

Seja o que for, o facto é que me vêm à memória com frequência uma série de coisas e às vezes não vêm completas e fico muito irritada, pior, alarmada, por sentir essas falhas. Sinto mais isso quando falo com o meu irmão sobre esses tempos, ele tem muito mais memórias, lembra-se de lugares, desta e daquela pessoa, de ex-vizinhos, de amigos (ainda tem vários por lá) e eu, nada!

Como não vou lá desde 2005, o que vou sabendo é através do que ele e a minha cunhada me contam e das fotos que vão tirando de cada vez que lá vão.

Para que não se esfume tudo da minha cabeça, e com o apoio dessas fotos, vou tentar passar para aqui algumas dessas lembranças.

Nasci “nas barbas” da antiga judiaria da cidade e vivi por lá, quase sempre, até aos 19 anos. Mas o meu conhecimento de que aquela zona foi a antiga judiaria é muito recente, naquela época nunca ouvi nada sobre isso, nem na Escola nem em lado algum, e durante vários anos depois, também não.

De há uns tempos para cá, os poderes locais têm dado muita relevância ao facto, a zona tem sido intervencionada e até ocorrem, anualmente, visitas guiadas, encenadas, para os turistas.

Voltando ao local de nascimento, ele ocorreu na Rua de S. Vicente, por detrás da Igreja do mesmo nome, numa casa que sempre ouvi dizer ser a “Casa do Pitaita”…?! Segundo a minha tia Fernanda, o Pitaita era um taberneiro que alugava a parte de cima da taberna, e este nome não passaria de uma alcunha. Quando era pequena, a minha mãe, de cada vez que passávamos por ali, dizia-me que a “casa do Pitaita era aquela…” mas agora já não sei bem qual das casas era essa, mas seguramente é uma dessas que se vêem nas fotos, do lado esquerdo.

       
Rua de S. Vicente)

Quando o meu irmão nasceu dois anos depois, já vivíamos noutra zona da cidade, não incluída na judiaria. Mas ainda hoje sei bem qual era a casa, na Rua Infante D. Henrique, perto da Praça (era assim que chamávamos ao Mercado), porque tenho umas remotas lembranças de um alpendre e de um quintal, e de uma senhora que vivia na casa contígua, a D. Urbana, de que ouvi a minha mãe falar muitas vezes. A dita casa, neste momento, já ruiu, era a que se encostava à que se vê, também em ruína.

Rua Infante D. Henrique
A derrocada do que foi o alpendre e do muro que resguardava um quintal agradável, são evidentes.
 Entretanto a Praça desapareceu, mudou-se para novas instalações e deu lugar às novas instalações da Câmara Municipal, que ficam do outro lado da rua da casa em ruínas.

Câmara Municipal
Dali, os meus pais mudaram-se para uma rua estreita, a Travessa da Estrela (que se chama agora Rua Dr. António Júlio, em homenagem ao nosso médico) perpendicular à Rua do Comércio (do lado direito para quem vem da Misericórdia para a Sé) que vinha dar à Rua Rui de Pina.

As lembranças que tenho dessa casa também são vagas, dois ou três degraus na entrada, para lá da porta mais escadas, uma sala não muito clara, onde a minha mãe se passeava, noites a fio, com o meu irmão ao colo, porque não parava de chorar. O meu pai tentava dormir no quarto, porque ao outro dia tinha de ir trabalhar. Lembro-me mais do desespero da minha mãe, por não saber já o que fazer para o acalmar, do que propriamente da casa.

Não tenho fotos desta rua nem desta casa, ou antes, talvez tenha, em papel, não sei é onde. Se houver hipótese de obter outras, alguma aqui virá parar. Mas tenho uma foto de quando teria perto de três anos, ei-la:
Não reconheço as pessoas à direita, apenas a da esquerda, a Lurditas, e a criança mais pequena, não sei se seria o meu irmão ou o filho dessa senhora.

Das, penúltima e última casas onde vivemos, é que tenho muitas lembranças e algumas bem marcantes. Falarei disso tudo no capítulo seguinte.


sábado, 31 de março de 2012

Antes que tudo se esfume - Meados do século XX...

Antes que tudo se esfume - Meados do século XX


À falta de melhor, fica este título.
Afinal, é a época de que, como muita outra gente, posso dizer os seguintes lugares-comuns:
- em que fiz a minha entrada no Mundo;
- em que comecei a contar para as estatísticas;
- em que comecei a ser gente...etc., etc., etc.
se me lembrar de mais algum, venho acrescentar...

Foi, com certeza, uma das melhores épocas da minha vida; eu ia escrever, a melhor, mas acho que não devo porque, apesar do meu pessimismo, da minha forma sempre receosa de encarar qualquer situação e esperar sempre o pior, tenho de reconhecer que fui tendo outras boas épocas, sim.
Mas voltando ao início, direi que foram mais uma vez as fotos antigas, aquelas pequenas, a preto e branco ou a sépia, algumas já meio desbotadas, outras desfocadas, que me fizeram vir aqui escrever mais umas coisitas.
Começo pelo começo: uma das raras fotos do casamento de meus pais, na Primavera de 1948:
Como é de calcular, além dos meus pais, não consigo identificar quase mais ninguém, apenas os meus avós paternos e uma ou outra cara que me parecem de algumas amigas da minha mãe que ainda conheci e com quem convivi. A Igreja, é a Sé Catedral da cidade beirã onde nasci. Pelo que sempre ouvi contar, os convidados do casamento eram muitos, pelo que, na foto, apenas estarão uma pequena parte deles, até porque não identifico nela as minhas tias, tios e primos, que sei que estiveram presentes. Este casamento deu "boleia" ao baptizado de um menino filho de uns parentes do meu pai que, convidando os noivos para padrinhos, aproveitaram a boda para evitar despesas próprias, o que aborreceu um bocado a família por parte da minha mãe, mas que não teve como evitar. Suponho que a criança que aparece de branco, nos braços de uma senhora de idade, seja a que foi baptizada.
A foto seguinte, é de 1950:
Não consigo identificar o local, que nem me parece ter sido a melhor escolha, mas gosto muito de me ver ao colo da minha querida mãe, com certeza desfrutando, nós as duas, de um momento de felicidade, igualmente partilhado pelo meu pai, autor desta foto e de muitas outras que ele nos tirou, não só porque eu sei que nos amava, mas porque era das raras pessoas que, na época e na cidade, possuía uma máquina fotográfica.

Esta também é de 1950 e talvez já eu tivesse completado um ano:
O quintal é o de uma das minhas tias, irmã da minha mãe, na aldeia onde ela nasceu. Quintal este que se manteve assim praticamente até que essa minha tia e tio morreram, ainda não há muitos anos.
Nas cadeirinhas estamos, eu, de chapelinho na cabeça, e uma das minhas primas que nascera uns mesitos antes de mim. Os outros são os primos mais velhos, irmãos dela.
As toscas construções graníticas que se vêm, tipícas daquelas aldeias beirãs, eram as chamadas lojas dos animais. Não parece, mas estão duas portas, uma à direita, outra por detrás da minha prima mais velha. Essa, lembro-me muito bem de ser a da loja onde se recolhia a burra, a outra era da loja que pertencia a outra família que partilhava o mesmo quintal e com certeza servia o mesmo fim. Atrás do muro, entre as duas portas, vislumbra-se ainda o campanário da Igreja Matriz.

Penso que esta que se segue, seja de 1953:
Não sei também localizar esta foto. Andei muito tempo convencida que seria lá, na aldeia da minha mãe, embora não reconhecesse o sítio, mas depois, tendo em conta as pessoas retratadas e também uma conversa que tive há uns tempos com a minha tia Fernanda, estou mais inclinada que tenha sido tirada numa das entradas da minha cidade, nos arrabaldes, como se dizia. É que, todas as pessoas em causa viviam na cidade e não seria muito provável que precisamente aquele conjunto se tivesse deslocado à aldeia.
Gosto muito desta foto porque estão nela pessoas que me foram muito queridas, como o meu pai, os meus avós paternos, a minha avó materna, a minha tia, irmã de meu pai e a minha prima mais velha;  outras que continuam a ser, como é o caso da minha mãe e tia, irmã dela; e amigas de que, dados os rumos que levaram as nossas vidas, nos separámos, mas de quem nunca perdemos totalmente o contacto. Figura também uma prima afastada de que mal me lembro e uma moça que, segundo julgo, terá sido a empregada lá de casa, a criada, como se dizia. Eu e o meu irmão, somos as únicas crianças presentes, porque também éramos as únicas neste núcleo familiar mais restrito.