Antes que tudo se esfume - Rua do Amparo, imediações e histórias de vizinhança
Volto à Rua do Amparo, imediações
e vizinhança, porque ainda hoje povoam os meus sonhos. O local preferido para
muitas das brincadeiras era o que chamávamos de “quatro quinas” e ruas em
volta.
As quatro quinas, noutra perspectiva, com a vista da rua "da Montanha"
Da vizinhança, ou melhor de
alguns vizinhos eu lembro-me muito bem porque foram figuras marcantes, se bem
que nem sempre pelas melhores razões.
Começando do alto e a descer a
rua, tínhamos uma família que designávamos pela alcunha de “Foge à mãe”; o pai era polícia, a mãe
doméstica e dois filhos, uma miúda e um miúdo, andavam na escola também mas não
me lembro dela ser da minha classe e ele da do meu irmão. O pai era o terror
daquela gente, a mulher e os filhos tinham o medo e o susto estampados nos
rostos e pouco se davam com a vizinhança. Quando aquela porta da rua se abria
víamos ao fundo do pátio a porta da casa, que só era entreaberta. Quando o
homem chegava, sempre com cara e modos de poucos amigos, a miudagem tratava de
fugir dali de perto. Hoje seria um caso de violência doméstica que devia ser
denunciado, pois era evidente que tratava mal a mulher e os filhos.
Continuando a descer a rua, havia
a casa da snra. Luz, uma idosa que tinha com ela uma filha e netos pequenos, de
que pouco me lembro. Depois, a casa do snr. Zé da Bárbara e da sua mulher Lurdes,
conhecida portanto como a Lurdes do Zé da Bárbara. Era um casal já de meia
idade, que tinha duas filhas a Conceição e a Maria Helena, já casadas, e que eram
amigas da minha mãe. A Conceição tinha uma filha da minha idade, a Lenita, que
era minha amiga. Fiquei muito desgostosa quando os pais e ela se foram para
Angola; nunca mais a vi. Pois bem, a casa do Zé da Bárbara era uma casa sempre
animada e cheia de novidades, funcionava assim como uma espécie de pensão, pelo
que as pessoas iam e vinham. Às vezes eram bons hóspedes, outras nem tanto. A
casa, tal como a minha, tinha um pátio e uma escada até lá cima. Entrei lá
algumas vezes e as poucas lembranças que tenho é de uma casa escura, que cheirava
muito a fritos e cheia de gente. Uma vez, em que andávamos por ali perto da
porta a brincar, vimos cair pela escada abaixo uma mulher e a snra. Lurdes que
se atirou atrás dela, aos gritos. Pelo sangue que vimos no pátio e pelo
alvoroço, apercebemo-nos logo que a tal mulher tinha morrido. Andei muito tempo
assustada com esta tragédia que observei. No rés-do-chão desta casa, morava,
penso que sozinha, a snra. Luísa, uma velhota já muito trôpega. A casa era
escura, muito suja e mal cheirosa como não podia deixar de ser, bem como a
velhota, junto da qual não se podia estar muito tempo, coitada, sempre muito
enranhosada e fanhosa. Lembro-me dela com uma vassoura de giestas na mão, a
varrer com muita dificuldade e às vezes a ameaçar com ela a miudagem que era atrevida. Por cima do snr. Zé da Bárbara, também habitavam algumas pessoas, de que já não me lembro.
Seguia-se a minha porta e a porta
do rés-do-chão, onde morava a menina Lurdes, o snr. Né e o filho, Ulisses,
família simpática com quem nos dávamos muito bem. O Ulisses era um pouco mais
velho que eu, por isso não me lembro dele na escola. A certa altura também
emigraram, para Moçambique, e a minha mãe sentiu muito a perda desta sua grande
amiga. Veio viver para essa casa a snra. Rosária (viúva) com o filho Abílio,
que estudava na Escola Comercial. Esta senhora também se tornou muito nossa
amiga.
Já quase na curva da rua, vivam as
“Penteadinhas”, duas irmãs também já de alguma idade, penso que uma se chamava
Emília, da outra não me lembra o nome. A impressão que me ficou delas, é que
não eram muito simpáticas, passavam muito tempo à janela, dando conta de tudo o
que se passava. A desfazer a curva, estava a casa da Lurditas ( e com esta já
são três as Lurdes desta rua), esposa do Zé Almeida da loja do Ferrinho. A
Lurditas era outra das amigas da minha mãe, ou melhor, da nossa família, uma
vez que a mãe dela, a D. Maria da Luz, tinha sido professora como a minha avó
Gracinda, tendo sido elas colegas de curso. A Lurditas (que nunca chamámos de
outra forma) tinha dois filhos, o Zézé, e a Lusita, esta bem mais nova que o
irmão, pois nasceu quando já eu andava talvez na 4.ª classe. Tornei-me mais
tarde comadre da Lurditas porque me escolheu para ser a madrinha de Crisma da
Lusita. A casa da Lurditas era uma atracção para nós, tinha dois pisos e um
quintal na muralha, um pouco mais espaçoso que o nosso. Gostava especialmente
de comer na casa dela porque me sabia muito bem a comida, apesar de não haver
muito asseio naquela cozinha nem no resto, ao fim e ao cabo… A Lurditas era
muito boa pessoa mas não era um primor de dona de casa, e logo lhe calhou por
marido um janota, um galanteador, um jogador, que sempre queria andar muito bem
arranjado e fazer vida de rico. Ora ela era muito pouco o ideal de mulher para
ele, daí se desentenderem tanto, de tantas discussões e brigas sérias, tareias
de ficar com o olho roxo e outras nódoas negras, que justificava à vizinhança
dizendo que tinha caído da escada. Até nós que eramos miúdos sabíamos o que se
passava, mas nem por isso ela contava outra história. Aquele casamento, segundo
me apercebi mais tarde, foi um casamento de conveniência para ambas as partes,
ou seja, para ela porque não queria ficar para tia como parecia estar a
acontecer e ele que viu ali um bom partido porque ela era pessoa de posses. Ele
trabalhava como empregado de balcão na loja do tio, o snr. Joaquim, na rua
direita, mas comportava-se como se fosse o dono. De facto veio a sê-lo, mas
muitos anos mais tarde. A casa onde moravam era de uma tia dela, a snra. Branca
do talho, que depois lhe deixou em herança. Como tinha dois pisos, na parte
correspondente ao 1.ºandar, morou também uma senhora chamada Nazaré, com dois
filhos estudantes, a quem a Lurditas o subalugara.
Eu não gostava nada de ir à loja
do Ferrinho por causa do Zé Almeida, que era todo salamaleques e às vezes
inconveniente. O tio, o snr. Joaquim, era um homem entroncado e baixinho, mas
com muito bom ar, que quase sempre estava lá para os fundos da loja. De vez em
quando percebia-se que chamava à pedra o sobrinho. Anos mais tarde, a Lurditas
passou a estar na loja também, bem como os filhos. O casal morreu já, os filhos
ainda lá estão com as respectivas famílias, têm outra loja, de frutas e legumes, um restaurante e
uma casa, na mesma rua.
Este portão verde, o n.º 13, era a entrada para a casa da minha comadre Lurditas, ao lado, o n.º 15, a casa das "Penteadinhas"
Ainda vou só no lado direito da
rua, para quem desce, e ainda não cheguei ao fim…
O fim da Rua do Amparo
Bem, no rés-do-chão do prédio da
Lurditas viviam os “Solinhos”, outra família de que seria difícil esquecer-me.
O “Ti Solinho” (que eu tenho uma ideia de ser parente da menina Lurdes que
vivia no rés-do-chão do meu prédio) era carpinteiro,
a mulher, snra. Céu, fazia limpezas e tinham dois filhos rapazes (não me lembro
dos nomes) e duas filhas a Madalena e a Elisa. A Madalena era um pouco mais
velha do que eu e a Elisa já era rapariga feita, era esta que me ia contar
histórias, para eu conseguir comer.
O rés-do-chão onde morava a família "Solinho", portão cinzento, baixo.
A família vivia muito mal, a casa
era muito pobre e sem condições, como aliás quase todas as da rua,
principalmente as de rés-do-chão. O homem era bêbado, berrava, insultava e
batia na mulher e nos filhos. Porém, se estava bem disposto, organizava
brincadeiras para a miudagem da rua, como por exemplo, sentava-se num banquito
à porta dele, espetava um pau comprido no chão e, numa fenda que fazia na
extremidade, entalava uma moeda de um tostão ou dois tostões, depois
mandava-nos alinhar a todos lá ao cimo da rua, encostados à parede e quando
apitava desatávamos a correr rua abaixo e o que primeiro chegasse era quem
retirava a moeda do pau. Eu gostava destas correrias, acho que corria bastante
e se calhar alguma vez cheguei primeiro, quem não achava graça era a minha mãe,
não só porque eu tinha estado doente como porque achava que eu assim parecia
uma maria-rapaz.
Seguia-se a casa da “Jangita”, que vivia no primeiro andar; sei que era casada, mas
não me lembro do marido e quase tenho a certeza que não tinha filhos. Tal como
as “Penteadinhas”, passava muito tempo à janela, mas sempre bem aperaltada. No
rés-do-chão, viveu a Eduardinha, costureira, que tinha sido a mestra da minha
mãe. Lembro-me muito bem dela, de espreitar pela janela e ver a sala onde
estavam as aprendizas, a mesa grande, o ferro aceso com brasas, muitos tecidos,
roupas já prontas e muitas linhas pelo chão. Eu disse que “viveu”, porque acho
que a Maria dos Anjos foi viver lá para a rua já depois da Eduardinha ter
desaparecido, mas não tenho a certeza.
Chegava-se à esquina com a casa
do “Beira-Baixa”, ou melhor, da mãe dessa “figura”, que vivia no primeiro andar
e o dito no rés-do-chão, com entrada já pela Rua de S. Vicente. Penso que seria
a família a quem a palavra “miséria” mais se aplicaria, porque de facto a sua existência
era miserável, custava a crer que seres humanos pudessem viver daquela maneira.
Penso que a mãe, que vivia no primeiro andar, se chamava Eufrásia, era uma
mulher pequena e magra, que muito se desgostava com aquele filho beberrão. Não
sei se vivia com ela uma filha, não me lembro.
O “Beira-Baixa” era um trolha,
que passava mais tempo bêbado do que a trabalhar. E tinha mau vinho porque
insultava toda a gente que passava. A mulher, mal tratada, estava
invariavelmente grávida, as crianças nasciam e morriam pois seria quase milagre
que sobrevivessem naquelas condições. No entanto algumas sobreviveram,
lembro-me de uma miúda a quem chamaram Elisabete, que tinha uns olhos muito
vivos mas, coitadinha, acabou por morrer também com uma doença a que chamávamos
“a tinha”. A miúda já teria uns três ou quatro anos, pois lembro-me de que
brincava ali na rua também. As outras mães não gostavam muito que brincássemos
com ela porque a doença, diziam, era contagiosa. Lembro-me da cabeça da miúda
ir ficando muito esquisita, quase sem cabelo e com um aspecto muito ruim. Dos
outros que nasceram depois, penso que sobreviveram dois, um rapaz e uma
rapariga, porque muitos anos mais tarde, aquando de algumas idas lá, encontrei
a mulher (já viúva há muito tempo) e esses dois filhos, ele igualmente bêbado
como fora o pai e a rapariga, pelo que soube, não andaria por muitos bons
caminhos. Entretanto, já viviam no primeiro andar, onde vivera a sogra.
Ao tal rés-do-chão em que viviam,
não se poderia chamar uma casa, aquilo era um buraco para onde se descia por
dois ou três degraus, um corredor que não tinha mais de um metro de largura mas
onde estavam amontoadas enxergas de palha e farrapos que tinham de se pisar
para alcançar a parte mais larga do buraco, em terra batida e que era indescritível.
Além do negrume das paredes, por força do fogareiro, ali tudo era sujo e nem se
sabia o que se estava a pisar além da terra. Entrei lá precisamente por ocasião
da morte da Elisabete e lembro-me que foi difícil ao padre entrar e conseguir-se
retirar o caixãozito para fora.
Estas portas e janela envidraçadas, debruadas a vermelho, foram a antiga morada da família do "Beira Baixa". A porta mais pequena era a de entrada. Por cima vivia a mãe. Hoje está tudo mudado, arranjado.
Mudando de lado da rua, e no
sentido ascendente, lembro-me de menos pessoas: em frente da “Jangita”, vivia a
Sãozinha, cunhada da Lurditas, que tinha dois miúdos. A casa era grande e quase
fazia a curva toda. O marido era mais alto e forte que o Zé Almeida, não me
lembro do nome dele. Ela era muito coscuvilheira, tal como outras dali, e tinha
muita inveja da cunhada e das amizades que a cunhada tinha, nomeadamente com a
minha mãe. A certa altura mudaram-se para outra terra (Coimbra?) mas nós já ali
não morávamos. Em frente do Zé da Bárbara vivia um homem já velhote e
solitário, a quem chamávamos o “Fernando dos penicos”, isto porque o homem,
pela manhã, abria a janela e atirava para a rua a penicada da noite, não se importando
se passava alguém ou não.
Seguiam-se as traseiras de uma
casa que tinha entrada pela Rua de S. Vicente, que para ali tinha as portas do
quintal e de umas arrecadações de lenha. A casa era a da snra. Arminda dos
rebuçados e dos bolos. Continuando a subir, lembro-me de mais uma ou duas casas
mas já não de quem eram os moradores. Seguia-se depois a Rua da Trindade, que
era a rua da minha avó Gracinda.
Voltando a situar-nos na casa do
“Foge à mãe”, e agora a subir, também havia mais casas, mas dos moradores só me
lembro da “Rosa do rato”, viúva com, salvo erro, dois filhos e duas filhas, que
era uma mulher alta, desembaraçada, sempre de mangas arregaçadas mesmo às vezes
no Inverno, e língua afiada. Lembro-me das duas filhas (uma alta outra baixa,
esqueci os nomes…) e do filho a que chamavam “Mandito” que foi trabalhar para o
Banco onde trabalhava o meu pai.
Nunca tivemos grande aproximação
a esta família, era somente a que a boa vizinhança obrigava.
Lá ao cimo da rua, a casa (ou
casas?) a cujas paredes nos encostávamos antes do Solinho dar ordem de partida
para a corrida, moravam pessoas de que me esqueci completamente, apenas recordo
que havia miúdos, mas mais nada.
Para o lado esquerdo, seguia-se a
rua nova, sendo que das casas de que melhor me lembro eram a do “ti Pinto”,
logo à esquina do lado direito, tipo vivenda a que se acedia por uma escada, e
que era pai da minha amiga Dulce Helena.
O Pinto era pintor, bebia copos e
provocava desacatos violentos, tal como os outros. A mulher, a snra. Albertina,
era quem recolhia as viandas da vizinhança, porque criava porcos lá para
“reinalda”. A Dulce Helena (que todos chamavam por “Chilena”, abreviando os
nomes…), tinha só irmãs: a Xaxão a Alice, a Mª Helena, a Létinha
. A “Chilena” era a mais nova e havia até grande diferença de idade
entre ela e as mais velhas. Uma outra irmã, só por parte do pai e mais velha
ainda, vivia na Venezuela e era, por parte da mãe, meia-irmã da menina Lourdes
que vivia no rés-do-chão do nosso prédio. Curiosamente, esta também se chamava
Celeste e vim a conhecê-la quando veio de Caracas visitar a família e trouxe
uma filha, ainda bebé.
Nós já não morávamos ali mas mesmo assim, tendo em conta que a minha mãe tinha sido a maior amiga da meia-irmã (já emigrada), ela confiou-nos a bebé enquanto precisou de dar algumas voltas, tratar de alguns assuntos. Ainda me lembro dos cuidados que tinha com a criança, dos objectos que trazia e eram indispensáveis para higiene, alimentação e entretenimento, as explicações detalhadas para tudo, os horários, etc., a ponto de termos tomado notas escritas para não falhar nada e também porque ela já falava muito mais espanhol do que português e tudo teve de ser repetido para ver se entendido. Na altura tudo isto foi novidade, uma vez que não víamos ninguém, com filhos pequenos, proceder assim, não tenho dúvida que naquela época, na Venezuela, já se tinha avançado bastante na pediatria e na puericultura. Também não duvido que se já houvesse telemóvel, ela não tinha parado de ligar a toda a hora… mas, como é sabido, nem telefones havia à disposição.
Nós já não morávamos ali mas mesmo assim, tendo em conta que a minha mãe tinha sido a maior amiga da meia-irmã (já emigrada), ela confiou-nos a bebé enquanto precisou de dar algumas voltas, tratar de alguns assuntos. Ainda me lembro dos cuidados que tinha com a criança, dos objectos que trazia e eram indispensáveis para higiene, alimentação e entretenimento, as explicações detalhadas para tudo, os horários, etc., a ponto de termos tomado notas escritas para não falhar nada e também porque ela já falava muito mais espanhol do que português e tudo teve de ser repetido para ver se entendido. Na altura tudo isto foi novidade, uma vez que não víamos ninguém, com filhos pequenos, proceder assim, não tenho dúvida que naquela época, na Venezuela, já se tinha avançado bastante na pediatria e na puericultura. Também não duvido que se já houvesse telemóvel, ela não tinha parado de ligar a toda a hora… mas, como é sabido, nem telefones havia à disposição.