domingo, 11 de novembro de 2012

Antes que tudo se esfume – Rua do Amparo, imediações e histórias da vizinhança


Antes que tudo se esfume - Rua do Amparo, imediações e histórias de vizinhança


Volto à Rua do Amparo, imediações e vizinhança, porque ainda hoje povoam os meus sonhos. O local preferido para muitas das brincadeiras era o que chamávamos de “quatro quinas” e ruas em volta.

As quatro quinas, noutra perspectiva, com a vista da rua "da Montanha"

Da vizinhança, ou melhor de alguns vizinhos eu lembro-me muito bem porque foram figuras marcantes, se bem que nem sempre pelas melhores razões.

Começando do alto e a descer a rua, tínhamos uma família que designávamos pela alcunha de  “Foge à mãe”; o pai era polícia, a mãe doméstica e dois filhos, uma miúda e um miúdo, andavam na escola também mas não me lembro dela ser da minha classe e ele da do meu irmão. O pai era o terror daquela gente, a mulher e os filhos tinham o medo e o susto estampados nos rostos e pouco se davam com a vizinhança. Quando aquela porta da rua se abria víamos ao fundo do pátio a porta da casa, que só era entreaberta. Quando o homem chegava, sempre com cara e modos de poucos amigos, a miudagem tratava de fugir dali de perto. Hoje seria um caso de violência doméstica que devia ser denunciado, pois era evidente que tratava mal a mulher e os filhos.

 Rua do Amparo - de cima para baixo, até à curva
(Nesta foto estão quase todas as casas das pessoas de que me lembro como vizinhas).

Continuando a descer a rua, havia a casa da snra. Luz, uma idosa que tinha com ela uma filha e netos pequenos, de que pouco me lembro. Depois, a casa do snr. Zé da Bárbara e da sua mulher Lurdes, conhecida portanto como a Lurdes do Zé da Bárbara. Era um casal já de meia idade, que tinha duas filhas a Conceição e a Maria Helena, já casadas, e que eram amigas da minha mãe. A Conceição tinha uma filha da minha idade, a Lenita, que era minha amiga. Fiquei muito desgostosa quando os pais e ela se foram para Angola; nunca mais a vi. Pois bem, a casa do Zé da Bárbara era uma casa sempre animada e cheia de novidades, funcionava assim como uma espécie de pensão, pelo que as pessoas iam e vinham. Às vezes eram bons hóspedes, outras nem tanto. A casa, tal como a minha, tinha um pátio e uma escada até lá cima. Entrei lá algumas vezes e as poucas lembranças que tenho é de uma casa escura, que cheirava muito a fritos e cheia de gente. Uma vez, em que andávamos por ali perto da porta a brincar, vimos cair pela escada abaixo uma mulher e a snra. Lurdes que se atirou atrás dela, aos gritos. Pelo sangue que vimos no pátio e pelo alvoroço, apercebemo-nos logo que a tal mulher tinha morrido. Andei muito tempo assustada com esta tragédia que observei. No rés-do-chão desta casa, morava, penso que sozinha, a snra. Luísa, uma velhota já muito trôpega. A casa era escura, muito suja e mal cheirosa como não podia deixar de ser, bem como a velhota, junto da qual não se podia estar muito tempo, coitada, sempre muito enranhosada e fanhosa. Lembro-me dela com uma vassoura de giestas na mão, a varrer com muita dificuldade e às vezes a ameaçar com ela a miudagem que era atrevida. Por cima do snr. Zé da Bárbara, também habitavam algumas pessoas, de que já não me lembro.

Seguia-se a minha porta e a porta do rés-do-chão, onde morava a menina Lurdes, o snr. Né e o filho, Ulisses, família simpática com quem nos dávamos muito bem. O Ulisses era um pouco mais velho que eu, por isso não me lembro dele na escola. A certa altura também emigraram, para Moçambique, e a minha mãe sentiu muito a perda desta sua grande amiga. Veio viver para essa casa a snra. Rosária (viúva) com o filho Abílio, que estudava na Escola Comercial. Esta senhora também se tornou muito nossa amiga.


Onde a rua faz a curva, a minha casa branca, n.º21; duas portas e por cima a janela.

Já quase na curva da rua, vivam as “Penteadinhas”, duas irmãs também já de alguma idade, penso que uma se chamava Emília, da outra não me lembra o nome. A impressão que me ficou delas, é que não eram muito simpáticas, passavam muito tempo à janela, dando conta de tudo o que se passava. A desfazer a curva, estava a casa da Lurditas ( e com esta já são três as Lurdes desta rua), esposa do Zé Almeida da loja do Ferrinho. A Lurditas era outra das amigas da minha mãe, ou melhor, da nossa família, uma vez que a mãe dela, a D. Maria da Luz, tinha sido professora como a minha avó Gracinda, tendo sido elas colegas de curso. A Lurditas (que nunca chamámos de outra forma) tinha dois filhos, o Zézé, e a Lusita, esta bem mais nova que o irmão, pois nasceu quando já eu andava talvez na 4.ª classe. Tornei-me mais tarde comadre da Lurditas porque me escolheu para ser a madrinha de Crisma da Lusita. A casa da Lurditas era uma atracção para nós, tinha dois pisos e um quintal na muralha, um pouco mais espaçoso que o nosso. Gostava especialmente de comer na casa dela porque me sabia muito bem a comida, apesar de não haver muito asseio naquela cozinha nem no resto, ao fim e ao cabo… A Lurditas era muito boa pessoa mas não era um primor de dona de casa, e logo lhe calhou por marido um janota, um galanteador, um jogador, que sempre queria andar muito bem arranjado e fazer vida de rico. Ora ela era muito pouco o ideal de mulher para ele, daí se desentenderem tanto, de tantas discussões e brigas sérias, tareias de ficar com o olho roxo e outras nódoas negras, que justificava à vizinhança dizendo que tinha caído da escada. Até nós que eramos miúdos sabíamos o que se passava, mas nem por isso ela contava outra história. Aquele casamento, segundo me apercebi mais tarde, foi um casamento de conveniência para ambas as partes, ou seja, para ela porque não queria ficar para tia como parecia estar a acontecer e ele que viu ali um bom partido porque ela era pessoa de posses. Ele trabalhava como empregado de balcão na loja do tio, o snr. Joaquim, na rua direita, mas comportava-se como se fosse o dono. De facto veio a sê-lo, mas muitos anos mais tarde. A casa onde moravam era de uma tia dela, a snra. Branca do talho, que depois lhe deixou em herança. Como tinha dois pisos, na parte correspondente ao 1.ºandar, morou também uma senhora chamada Nazaré, com dois filhos estudantes, a quem a Lurditas o subalugara.

Eu não gostava nada de ir à loja do Ferrinho por causa do Zé Almeida, que era todo salamaleques e às vezes inconveniente. O tio, o snr. Joaquim, era um homem entroncado e baixinho, mas com muito bom ar, que quase sempre estava lá para os fundos da loja. De vez em quando percebia-se que chamava à pedra o sobrinho. Anos mais tarde, a Lurditas passou a estar na loja também, bem como os filhos. O casal morreu já, os filhos ainda lá estão com as respectivas famílias, têm outra loja, de frutas e legumes, um restaurante e uma casa, na mesma rua.





Este portão verde, o n.º 13, era a entrada para a casa da minha comadre Lurditas, ao lado, o n.º 15, a casa das "Penteadinhas"


Ainda vou só no lado direito da rua, para quem desce, e ainda não cheguei ao fim…



O fim da Rua do Amparo

Bem, no rés-do-chão do prédio da Lurditas viviam os “Solinhos”, outra família de que seria difícil esquecer-me. O “Ti Solinho” (que eu tenho uma ideia de ser parente da menina Lurdes que vivia no rés-do-chão do meu prédio)  era carpinteiro, a mulher, snra. Céu, fazia limpezas e tinham dois filhos rapazes (não me lembro dos nomes) e duas filhas a Madalena e a Elisa. A Madalena era um pouco mais velha do que eu e a Elisa já era rapariga feita, era esta que me ia contar histórias, para eu conseguir comer.



O rés-do-chão onde morava a família "Solinho", portão cinzento, baixo.

A família vivia muito mal, a casa era muito pobre e sem condições, como aliás quase todas as da rua, principalmente as de rés-do-chão. O homem era bêbado, berrava, insultava e batia na mulher e nos filhos. Porém, se estava bem disposto, organizava brincadeiras para a miudagem da rua, como por exemplo, sentava-se num banquito à porta dele, espetava um pau comprido no chão e, numa fenda que fazia na extremidade, entalava uma moeda de um tostão ou dois tostões, depois mandava-nos alinhar a todos lá ao cimo da rua, encostados à parede e quando apitava desatávamos a correr rua abaixo e o que primeiro chegasse era quem retirava a moeda do pau. Eu gostava destas correrias, acho que corria bastante e se calhar alguma vez cheguei primeiro, quem não achava graça era a minha mãe, não só porque eu tinha estado doente como porque achava que eu assim parecia uma maria-rapaz.

Seguia-se a casa da “Jangita”,  que vivia no primeiro andar; sei que era casada, mas não me lembro do marido e quase tenho a certeza que não tinha filhos. Tal como as “Penteadinhas”, passava muito tempo à janela, mas sempre bem aperaltada. No rés-do-chão, viveu a Eduardinha, costureira, que tinha sido a mestra da minha mãe. Lembro-me muito bem dela, de espreitar pela janela e ver a sala onde estavam as aprendizas, a mesa grande, o ferro aceso com brasas, muitos tecidos, roupas já prontas e muitas linhas pelo chão. Eu disse que “viveu”, porque acho que a Maria dos Anjos foi viver lá para a rua já depois da Eduardinha ter desaparecido, mas não tenho a certeza.

Chegava-se à esquina com a casa do “Beira-Baixa”, ou melhor, da mãe dessa “figura”, que vivia no primeiro andar e o dito no rés-do-chão, com entrada já pela Rua de S. Vicente. Penso que seria a família a quem a palavra “miséria” mais se aplicaria, porque de facto a sua existência era miserável, custava a crer que seres humanos pudessem viver daquela maneira. Penso que a mãe, que vivia no primeiro andar, se chamava Eufrásia, era uma mulher pequena e magra, que muito se desgostava com aquele filho beberrão. Não sei se vivia com ela uma filha, não me lembro.

O “Beira-Baixa” era um trolha, que passava mais tempo bêbado do que a trabalhar. E tinha mau vinho porque insultava toda a gente que passava. A mulher, mal tratada, estava invariavelmente grávida, as crianças nasciam e morriam pois seria quase milagre que sobrevivessem naquelas condições. No entanto algumas sobreviveram, lembro-me de uma miúda a quem chamaram Elisabete, que tinha uns olhos muito vivos mas, coitadinha, acabou por morrer também com uma doença a que chamávamos “a tinha”. A miúda já teria uns três ou quatro anos, pois lembro-me de que brincava ali na rua também. As outras mães não gostavam muito que brincássemos com ela porque a doença, diziam, era contagiosa. Lembro-me da cabeça da miúda ir ficando muito esquisita, quase sem cabelo e com um aspecto muito ruim. Dos outros que nasceram depois, penso que sobreviveram dois, um rapaz e uma rapariga, porque muitos anos mais tarde, aquando de algumas idas lá, encontrei a mulher (já viúva há muito tempo) e esses dois filhos, ele igualmente bêbado como fora o pai e a rapariga, pelo que soube, não andaria por muitos bons caminhos. Entretanto, já viviam no primeiro andar, onde vivera a sogra.

Ao tal rés-do-chão em que viviam, não se poderia chamar uma casa, aquilo era um buraco para onde se descia por dois ou três degraus, um corredor que não tinha mais de um metro de largura mas onde estavam amontoadas enxergas de palha e farrapos que tinham de se pisar para alcançar a parte mais larga do buraco, em terra batida e que era indescritível. Além do negrume das paredes, por força do fogareiro, ali tudo era sujo e nem se sabia o que se estava a pisar além da terra. Entrei lá precisamente por ocasião da morte da Elisabete e lembro-me que foi difícil ao padre entrar e conseguir-se retirar o caixãozito para fora.

Estas portas e janela envidraçadas, debruadas a vermelho, foram a antiga morada da família do "Beira Baixa". A porta mais pequena era a de entrada. Por cima vivia a mãe. Hoje está tudo mudado, arranjado.

Mudando de lado da rua, e no sentido ascendente, lembro-me de menos pessoas: em frente da “Jangita”, vivia a Sãozinha, cunhada da Lurditas, que tinha dois miúdos. A casa era grande e quase fazia a curva toda. O marido era mais alto e forte que o Zé Almeida, não me lembro do nome dele. Ela era muito coscuvilheira, tal como outras dali, e tinha muita inveja da cunhada e das amizades que a cunhada tinha, nomeadamente com a minha mãe. A certa altura mudaram-se para outra terra (Coimbra?) mas nós já ali não morávamos. Em frente do Zé da Bárbara vivia um homem já velhote e solitário, a quem chamávamos o “Fernando dos penicos”, isto porque o homem, pela manhã, abria a janela e atirava para a rua a penicada da noite, não se importando se passava alguém ou não.

Seguiam-se as traseiras de uma casa que tinha entrada pela Rua de S. Vicente, que para ali tinha as portas do quintal e de umas arrecadações de lenha. A casa era a da snra. Arminda dos rebuçados e dos bolos. Continuando a subir, lembro-me de mais uma ou duas casas mas já não de quem eram os moradores. Seguia-se depois a Rua da Trindade, que era a rua da minha avó Gracinda.

Voltando a situar-nos na casa do “Foge à mãe”, e agora a subir, também havia mais casas, mas dos moradores só me lembro da “Rosa do rato”, viúva com, salvo erro, dois filhos e duas filhas, que era uma mulher alta, desembaraçada, sempre de mangas arregaçadas mesmo às vezes no Inverno, e língua afiada. Lembro-me das duas filhas (uma alta outra baixa, esqueci os nomes…) e do filho a que chamavam “Mandito” que foi trabalhar para o Banco onde trabalhava o meu pai.

Nunca tivemos grande aproximação a esta família, era somente a que a boa vizinhança obrigava.

Lá ao cimo da rua, a casa (ou casas?) a cujas paredes nos encostávamos antes do Solinho dar ordem de partida para a corrida, moravam pessoas de que me esqueci completamente, apenas recordo que havia miúdos, mas mais nada.

Para o lado esquerdo, seguia-se a rua nova, sendo que das casas de que melhor me lembro eram a do “ti Pinto”, logo à esquina do lado direito, tipo vivenda a que se acedia por uma escada, e que era pai da minha amiga Dulce Helena.

O Pinto era pintor, bebia copos e provocava desacatos violentos, tal como os outros. A mulher, a snra. Albertina, era quem recolhia as viandas da vizinhança, porque criava porcos lá para “reinalda”. A Dulce Helena (que todos chamavam por “Chilena”, abreviando os nomes…), tinha só irmãs: a Xaxão a Alice, a Mª Helena, a Létinha . A “Chilena” era a mais nova e havia até grande diferença de idade entre ela e as mais velhas. Uma outra irmã, só por parte do pai e mais velha ainda, vivia na Venezuela e era, por parte da mãe, meia-irmã da menina Lourdes que vivia no rés-do-chão do nosso prédio. Curiosamente, esta também se chamava Celeste e vim a conhecê-la quando veio de Caracas visitar a família e trouxe uma filha, ainda bebé.
Nós já não morávamos ali mas mesmo assim, tendo em conta que a minha mãe tinha sido a maior amiga da meia-irmã (já emigrada), ela confiou-nos a bebé enquanto precisou de dar algumas voltas, tratar de alguns assuntos. Ainda me lembro dos cuidados que tinha com a criança, dos objectos que trazia e eram indispensáveis para higiene, alimentação e entretenimento, as explicações detalhadas para tudo, os horários, etc., a ponto de termos tomado notas escritas para não falhar nada e também porque ela já falava muito mais espanhol do que português e tudo teve de ser repetido para ver se entendido. Na altura tudo isto foi novidade, uma vez que não víamos ninguém, com filhos pequenos, proceder assim, não tenho dúvida que naquela época, na Venezuela, já se tinha avançado bastante na pediatria e na puericultura. Também não duvido que se já houvesse telemóvel, ela não tinha parado de ligar a toda a hora… mas, como é sabido, nem telefones havia à disposição.



Antes que tudo se esfume - Escola Primária


Antes que tudo se esfume – Escola Primária


A minha cura foi declarada no mês de Maio de 1956, passados dezoito meses após ter adoecido.

Recordo-me do primeiro dia que saí à rua depois da doença, o tempo era de Primavera mas mesmo assim a minha mãe, à cautela, agasalhou-me com um xaile de lã que me atou em cruz atrás das costas para não o deixar cair e recomendou-me que não me afastasse dali da porta. Mal a apanhei distraída, subi a correr pela rua da montanha acima e dei volta a todas as ruas que conhecia, evitando passar pela rua da minha avó, não fosse o caso de me verem da janela e me travarem no meu passeio. Lembro-me da sensação das pernas a tremer, do coração a bater e de não me importar nada com isso e só querer andar, andar e ver tudo. Claro que cheguei cansada e a minha mãe só não me deu uma tareia porque ficou alarmada demais.

Mas o tempo foi avançando e fui ficando mais forte e mais confiante.

Em Agosto fiz os sete anos e em 7 de Outubro entrei finalmente na Escola Primária do Espírito Santo.

Escola Primária do Espírito Santo
Mas ainda era cedo para confiar totalmente nas minhas forças, por isso fui sempre muito vigiada e quando a minha mãe me levou à Escola pela primeira vez a professora foi logo muito avisada de que eu não podia brincar no recreio como as outras crianças, que não podia correr, que não podia apanhar sol, etc., etc.

Do primeiro dia de aulas ficou-me uma decepção: a professora, D. Carmelina, ao determinar os nossos lugares nas carteiras (as antigas secretárias de madeira) fez-me sentar, com outra miúda, na penúltima da primeira fila. A explicação que ela deu foi que as meninas mais altas tinham de ficar mais atrás… isto sempre me surpreendeu porque, pequena como sou e acho que sempre fui, pelo visto, na 1.ª classe, eu era das mais altitas…

Outra situação que ao princípio me deixou desconcertada era o facto de eu não ser a única na classe com este nome, nome de que, por acaso, não gostava nada. Quando tive consciência de que este meu nome se devia à escolha da minha madrinha, que também se chamava assim e que a minha mãe teve de aceitar porque enfim, era de tradição a madrinha escolher, fiquei muito aborrecida, para mais que a minha mãe já teria em mente outro nome de que eu gostava muito mais, mas a chegada dos tios brasileiros que ela convidou para padrinhos, veio alterar tudo.

Bem, estava eu a contar que fiquei surpresa com a existência de outra miúda com o meu nome e a surpresa não foi só essa; é que, a tal miúda tinha uma irmã gémea, a Dulce Helena, e a minha melhor amiga e vizinha, também se chamava Dulce Helena. Esta duplicação dava azo a várias peripécias, a professora chamava pelo meu nome e levantávamo-nos duas, e com a minha amiga e a outra Dulce Helena, sucedia o mesmo.

Nessa classe, havia também outra miúda minha amiga, que se chamava Antonieta, nome esse que era precisamente o que a minha mãe me teria dado, caso tivesse sido ela a decidir e de que gostava muito. Sentia-me muito infeliz quando pensava que eu poderia também chamar-me Antonieta e não aquele meu nome que detestava.

De facto, durante anos, detestei o meu nome, soava-me muito mal e não gostava de ouvir chamarem-me, mas claro, como tudo nesta vida vai passando, essa malquerença ao meu nome também me passou. As minhas amigas também passaram, ou seja, perdi-lhes completamente o rasto. As gémeas, chamadas de “gémeas da mata” porque eram filhas de um guarda-florestal, nunca mais vi, as outras também vi pouquíssimas vezes mais.
Felizmente, os quatros anos de escola primária decorreram sem incidentes, tanto a nível da aprendizagem como da saúde. Acho que fui boa aluna, fiz os exames da terceira e da quarta classes e o exame de admissão ao Liceu e à Escola Técnica. No exame de admissão ao Liceu é que tive o primeiro grande desgosto escolar, porque reprovei. Como não me tinha inscrito para o exame de admissão à Escola Técnica, a minha mãe teve de pagar a multa para eu fazer o exame, que correu bem e entrei então depois na Escola Comercial e Industrial. Abreviei aqui os acontecimentos, mas talvez volte ao  assunto mais tarde, para expor, enquanto me lembro, tudo o que realmente aconteceu. É que, comecei a vida escolar com uma decepção em relação à professora primária e terminei-a de igual modo, se bem que durante o decorrer dos quatro anos escolares a professora me tenha cativado. Por isso, a última decepção foi mesmo a mais marcante, não esperava dela a atitude que tomou, tanto em relação a mim como a mais alguns alunos. Os pais também não gostaram nada. E sem dúvida que a minha reprovação na admissão ao Liceu, teve tudo a ver com isso.