Antes que tudo se esfume - Entre os quatro e os dez anos
A penúltima casa onde vivi, situava-se
na Rua do Amparo, rua esta que era a entrada para a judiaria, e muito próxima
portanto da rua onde nasci.
Rua do Amparo
Como se vê, a rua é muito estreita
na parte onde se situava a minha casa, formando uma curva acentuada que vinha
desembocar nas Quatro Quinas ou seja, no cruzamento com as ruas de S. Vicente e
de São Vicente de Paulo (esta, para nós, era a rua da montanha).
As Quatro Quinas
Para o lado
oposto, a rua ia alargando e subindo, bifurcando à direita para a Rua da
Trindade e à esquerda para a rua que nós chamávamos de Rua Nova, que mais
parecia um largo, que por sua vez tinha outras duas saídas, uma à direita para
a Quelha (hoje denominada Travessa do Rato), que vinha dar à Rua da Trindade, outra à
esquerda que descia para o que chamávamos de bairro do Poço do Gado, ou seja,
para uma zona pouco recomendável da cidade, por ser a zona das meretrizes. Tudo
isto, ou seja, a dita Rua Nova e o Poço do Gado, são afinal extensões da Rua do
Amparo. Do Poço do Gado chegava-se ao Largo de São Vicente, para onde dava a
frontaria da casa da minha avó, bem encostadinha à parede lateral da Igreja. A
minha avó vivia no 1.º andar e a casa dispunha, nessa frontaria, de duas
janelas e uma pequena varanda a meio, entre elas. Do lado da entrada, pela Rua
da Trindade, mais quatro janelas.
Rua da Trindade
Voltando à casa, ou melhor, ao
prédio da Rua do Amparo que, como se pode ver na imagem seguinte, é um das mais
bem conservados, foi nossa morada até aos meus 10 anos.
Cabe aqui referir que o prédio se
enquadra na tipificação das casas judaicas, ou seja, prédio de um só piso, com
uma porta estreita para um pequeno pátio e com escada de acesso à habitação e
outra porta mais larga ao lado, no piso térreo, que seria a do estabelecimento comercial
ou oficina. Nós ocupávamos o 1.º andar que só tinha, para a rua, unicamente
aquela janela e, no piso térreo, ou rés-do-chão, transformado em habitação com
certeza há muitos, muitos anos, morava outro inquilino. Ao contrário desse
rés-do-chão que era pequeno e escuro pois não tinha qualquer outra entrada de
luz além da que recebia da porta, o 1.º andar era bem diferente tanto em
tamanho como em luminosidade. De facto, virada para a rua, só havia aquela
janela, que era a da sala e portanto o quarto interior que lhe ficava contíguo
recebia pouca luz. Esse quarto tinha porém duas entradas, uma pela sala e outra
pelo corredor, facto esse que fez com que a minha mãe o dividisse em dois, onde
a família se acomodava. Para as traseiras, a situação era outra, quase
parecendo existir outra casa, ou melhor, outro apartamento, dentro daquele.
Tínhamos a cozinha à direita de quem entrava em casa, à esquerda um corredor
que levava à sala e quarto, e em frente da porta estendia-se outro corredor com
dois níveis de soalho, situando-se à direita mais uns dois quartos, uma sala e
outra divisão que servia de cozinha. Estando o prédio praticamente encostado à
Muralha (para a parte de dentro), os muros de granito formavam ali uma espécie
de quintal, não muito largo, que se estendia ao longo de toda a parede
traseira. A nossa cozinha tinha uma saída para esse quintal e a cozinha do
fundo, também, e havia janelas nos tais quartos a dar igualmente para o quintal.
Como era vulgar neste tipo de casas, não havia instalações sanitárias, o que
havia era uma pia de despejos no pátio da entrada, bem atrás da porta da rua,
que servia tanto a nós como à vizinha do rés-do-chão, uma vez que a habitação dela
tinha uma porta interior de acesso a esse pátio. Para ela o acesso era mais
fácil do que para nós, que tínhamos de descer um bom lance de escadas com
baldes ou alguidares cheios, para despejar.
Traseira da casa da Rua do Amparo
Na nossa cozinha, lembro-me de
existirem, à direita, duas portas que davam para arrecadações (despensa e
arrumo de lenha, carqueja e carvão), na parede em frente, estava o grande fogão
de lenha e do lado direito deste existia um vão onde a minha mãe tinha uma espécie
de bancada. À esquerda do fogão estava a porta para o quintal e no recanto também
à esquerda estavam a mesa, as cadeiras, umas prateleiras de madeira pregadas
nas paredes e um armário, onde se penduravam e guardavam louças. Em cima desse
armário lembro-me bem que estava a telefonia.
Nunca morámos sozinhos nesta
casa. Os meus pais, ou melhor dizendo, a minha mãe, aproveitou o facto de a
casa ser grande para subalugar e assim equilibrar melhor o orçamento da família
que começou, nesta época, a ser problemático. Acho que os grandes problemas da
minha família começaram precisamente quando já vivíamos nesta casa mas, sobre essa
má fase (que se prolongou pelo resto da minha infância e juventude), não vou
aqui adiantar mais nada, apenas que me apercebi dela bem cedo, talvez por volta
dos meus quatro ou cinco anos. Foi também aos cinco anos que adoeci gravemente
o que me obrigou a ficar de cama durante um ano e meio (1954 a 1956). Estando
de cama, a minha mãe retirou-me do quarto e mudou a minha camita para a sala,
de frente para a janela, de onde me chegavam todos os sons de rua que eu passei
a identificar facilmente. Não havia riso, choro, ralho, conversa, correria,
passos que eu não soubesse de quem eram, assim como sabia bem quem entrava em
casa e subia a escada, desde o médico, ao enfermeiro (que vinha quase
diariamente) ao meu pai, à minha tia, avós, tias do Alvendre, lavadeira, etc.
Não vinham muito a casa os miúdos e miúdas da vizinhança, por causa do perigo
de contágio, que de facto existia. Também o meu irmão estava proibido de se
chegar ao pé de mim, isto na fase mais aguda da doença. Porém, eu também tinha
sido contagiada, bem como outras crianças que comigo andavam no Centro, outras
escaparam, como foi o caso do meu irmão. Eu devo ter sido o caso pior porque
fui a que demorou mais tempo a curar-se.
Desse período tenho lembranças boas
e más; as boas relacionavam-se com as visitas rápidas que o meu pai me fazia
(por serem em horário de trabalho), mas que eu ansiava porque ele vinha
mimar-me e trazia-me sempre um presentinho, normalmente um daqueles livrinhos
de histórias muito pequenos, que eu adorava. Já juntava as letras e conseguia
ler alguma coisa porque antes, já andara na “Escola Paga” e no Centro.
“Escola Paga”: não se tratava de
uma escola, claro, era simplesmente uma casa onde uma rapariga vizinha recebia
os miúdos da vizinhança que ainda não tinham entrado na Escola Primária, para
lhes ensinar as primeiras letras, as primeiras contas. Levava-mos de casa um
banquinho de madeira, uma ardósia e respectivo ponteiro e o lanche. As mães
pagavam qualquer coisa à rapariga, daí o chamarmos à casa dela a “Escola Paga”.
Depois fui para o Centro (uma espécie de jardim de infância) que ficava ao pé
da Igreja da Misericórdia. Aí passávamos o dia, almoçávamos e lanchávamos e
pelas 17.00 h saíamos. Tínhamos o nosso bibe, o nosso cabide, o nosso lugar na
mesa. Meninas numa sala, meninos noutra, brincadeiras separadas. Depois do
almoço, cada uma sentada na seu lugar à mesa e depois destas terem sido
esvaziadas e limpas, deitávamos a cabeça em cima dos braços apoiados no tampo e era suposto que
dormíssemos uma sesta. Corriam-se as cortinas e a irmã que nos vigiava não
queria ninguém de olhos abertos, a ordem era para dormir. Lembro-me que não
dormia, embora tivesse medo de abrir os olhos, mas de vez em quando abria e
observava algumas que dormiam e outras não, tal como eu. Recordo-me da Elvira,
uma miúda rebelde, que era sempre admoestada e castigada e que, claro, também
não dormia, mas ao contrário de mim que ficava muito quieta, ela ficava
irrequieta.
Entretanto, afastei-me do que
estava a relatar, as boas lembranças, em que também incluo outras aprendizagens
que ia fazendo sozinha, como saber ver as horas no relógio da sala, que me
ficava mesmo na frente. Por ordens médicas, a minha mãe tinha de me medir a
febre várias vezes ao dia e registar num caderninho, então quando me colocava o
termómetro debaixo do braço, dizia-me para a chamar quando o ponteiro grande
tivesse chegado a tal número. Isto irritava-me muito porque eu não queria que
ela me dissesse assim mas antes, “quando for um quarto para as quatro ou oito e
dez” pois eu já sabia muito bem ver as horas. Então quando chegava a hora eu
berrava logo “já é um quarto para as quatro”, etc… Outra coisa boa eram as
histórias que me contavam. Eu quase não comia, juntava tudo no canto da
bochecha e, invariavelmente, vomitava. A minha mãe e o resto da família já não
sabiam o que fazer, para mais que grande parte da cura dependia de uma boa
alimentação. Então o contarem-me histórias ajudava um bocado a que eu me
distraísse e permitisse que alguma coisa chegasse ao estômago. Por exaustão, a
minha mãe acabou por contratar uma moça, filha do Solinho,(que tinha o mesmo nome que eu)
que vinha contar-me histórias ao mesmo tempo que me enfiava pela boca abaixo
mais uma colherada.
As más lembranças eram as alturas
de febres altas, da prostração, das injeções quase diárias que o enfermeiro
snr. Júlio me ia dar e já nem sabia onde, pois as minhas nádegas magras estavam
todas picadas, das dores de estômago por vomitar tanto, do amargo das grandes
pastilhas da lata da Roche que tinha de engolir, das visitas do médico Dr.
António Júlio que me auscultava com aquele objecto frio nas costas e no peito,
dos horríveis xaropes caseiros que me faziam engolir e que só o cheiro de
quando os faziam já me fazia vómitos, da comida de uma maneira geral que me
enjoava, de não me poder levantar para brincar com os outros que ouvia na rua,
de ficar muito infeliz quando me apercebi que eles iam começar a Escola
Primária e eu não. Aconteceram também alturas de pânico, quando a febre subia
imenso e a minha mãe, desesperada, pegava em mim ao colo, toda embrulhada e
corria para o Montepio, onde o médico dava consulta. Então ele metia-me na
radioscopia (era assim que a minha mãe dizia) que, penso hoje, seria uma forma
de fazer um RX uma vez que era encostada a uma grande chapa que parecia de
ferro, fria, enquanto o médico dizia para não respirar.
De uma dessas vezes em que fui
levada à pressa, nevava imenso e a minha mãe embrulhou-me em tudo o que tinha
de agasalho desde camisolas a cobertores e, ajudada por uma prima do meu pai, a Julieta, que estava lá
ocasionalmente, entrou no Montepio comigo nos braços. O médico assim que nos
viu deu-lhe um ataque de fúria e berrou para a minha mãe que ela era uma
irresponsável por me ter levado lá com aquele tempo gelado que tanto me podia
afectar. A minha mãe só chorava e ele dizia-lhe que mesmo que me visse vinte
vezes ao dia não me podia curar e que se eu tinha piorado devia tê-lo mandado
chamar e não ter-me levado lá com aquele tempo. É certo que ouvi depois contar
este e outros episódios ao longo da minha vida, mas tenho, desta cena, algumas
lembranças, apesar de dizerem que eu delirava com a febre.
Fica a foto que eu acho que deve ter sido tirada pouco antes de adoecer:
Lembro-me que chorei porque não queria tirar a foto, sabe-se lá o porquê… então o fotógrafo deu-me dois bonequinhos, um azul outro rosa e depois disse-me que ia colocá-los um de cada lado, por baixo do vestido, que era para me protegerem. então acalmei e saiu a foto. Tenho a ideia de o vestido ser rosa muito claro.
Fica a foto que eu acho que deve ter sido tirada pouco antes de adoecer:
Lembro-me que chorei porque não queria tirar a foto, sabe-se lá o porquê… então o fotógrafo deu-me dois bonequinhos, um azul outro rosa e depois disse-me que ia colocá-los um de cada lado, por baixo do vestido, que era para me protegerem. então acalmei e saiu a foto. Tenho a ideia de o vestido ser rosa muito claro.