quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Antes que tudo de esfume - Entre os quatro e os dez anos


Antes que tudo se esfume - Entre os quatro e os dez anos


A penúltima casa onde vivi, situava-se na Rua do Amparo, rua esta que era a entrada para a judiaria, e muito próxima portanto da rua onde nasci.

Rua do Amparo

Como se vê, a rua é muito estreita na parte onde se situava a minha casa, formando uma curva acentuada que vinha desembocar nas Quatro Quinas ou seja, no cruzamento com as ruas de S. Vicente e de São Vicente de Paulo (esta, para nós, era a rua da montanha).
As Quatro Quinas

Para o lado oposto, a rua ia alargando e subindo, bifurcando à direita para a Rua da Trindade e à esquerda para a rua que nós chamávamos de Rua Nova, que mais parecia um largo, que por sua vez tinha outras duas saídas, uma à direita para a Quelha (hoje denominada Travessa do Rato), que vinha dar à Rua da Trindade, outra à esquerda que descia para o que chamávamos de bairro do Poço do Gado, ou seja, para uma zona pouco recomendável da cidade, por ser a zona das meretrizes. Tudo isto, ou seja, a dita Rua Nova e o Poço do Gado, são afinal extensões da Rua do Amparo. Do Poço do Gado chegava-se ao Largo de São Vicente, para onde dava a frontaria da casa da minha avó, bem encostadinha à parede lateral da Igreja. A minha avó vivia no 1.º andar e a casa dispunha, nessa frontaria, de duas janelas e uma pequena varanda a meio, entre elas. Do lado da entrada, pela Rua da Trindade, mais quatro janelas.


Rua da Trindade

 Largo de São Vicente - A casa da minha avó
Voltando à casa, ou melhor, ao prédio da Rua do Amparo que, como se pode ver na imagem seguinte, é um das mais bem conservados, foi nossa morada até aos meus 10 anos.
Rua do Amparo (antes da curva à esquerda, prédio branco à direita,nº 21)

Cabe aqui referir que o prédio se enquadra na tipificação das casas judaicas, ou seja, prédio de um só piso, com uma porta estreita para um pequeno pátio e com escada de acesso à habitação e outra porta mais larga ao lado, no piso térreo, que seria a do estabelecimento comercial ou oficina. Nós ocupávamos o 1.º andar que só tinha, para a rua, unicamente aquela janela e, no piso térreo, ou rés-do-chão, transformado em habitação com certeza há muitos, muitos anos, morava outro inquilino. Ao contrário desse rés-do-chão que era pequeno e escuro pois não tinha qualquer outra entrada de luz além da que recebia da porta, o 1.º andar era bem diferente tanto em tamanho como em luminosidade. De facto, virada para a rua, só havia aquela janela, que era a da sala e portanto o quarto interior que lhe ficava contíguo recebia pouca luz. Esse quarto tinha porém duas entradas, uma pela sala e outra pelo corredor, facto esse que fez com que a minha mãe o dividisse em dois, onde a família se acomodava. Para as traseiras, a situação era outra, quase parecendo existir outra casa, ou melhor, outro apartamento, dentro daquele. Tínhamos a cozinha à direita de quem entrava em casa, à esquerda um corredor que levava à sala e quarto, e em frente da porta estendia-se outro corredor com dois níveis de soalho, situando-se à direita mais uns dois quartos, uma sala e outra divisão que servia de cozinha. Estando o prédio praticamente encostado à Muralha (para a parte de dentro), os muros de granito formavam ali uma espécie de quintal, não muito largo, que se estendia ao longo de toda a parede traseira. A nossa cozinha tinha uma saída para esse quintal e a cozinha do fundo, também, e havia janelas nos tais quartos a dar igualmente para o quintal. Como era vulgar neste tipo de casas, não havia instalações sanitárias, o que havia era uma pia de despejos no pátio da entrada, bem atrás da porta da rua, que servia tanto a nós como à vizinha do rés-do-chão, uma vez que a habitação dela tinha uma porta interior de acesso a esse pátio. Para ela o acesso era mais fácil do que para nós, que tínhamos de descer um bom lance de escadas com baldes ou alguidares cheios, para despejar.

 Traseira da casa da Rua do Amparo

Na nossa cozinha, lembro-me de existirem, à direita, duas portas que davam para arrecadações (despensa e arrumo de lenha, carqueja e carvão), na parede em frente, estava o grande fogão de lenha e do lado direito deste existia um vão onde a minha mãe tinha uma espécie de bancada. À esquerda do fogão estava a porta para o quintal e no recanto também à esquerda estavam a mesa, as cadeiras, umas prateleiras de madeira pregadas nas paredes e um armário, onde se penduravam e guardavam louças. Em cima desse armário lembro-me bem que estava a telefonia.

Nunca morámos sozinhos nesta casa. Os meus pais, ou melhor dizendo, a minha mãe, aproveitou o facto de a casa ser grande para subalugar e assim equilibrar melhor o orçamento da família que começou, nesta época, a ser problemático. Acho que os grandes problemas da minha família começaram precisamente quando já vivíamos nesta casa mas, sobre essa má fase (que se prolongou pelo resto da minha infância e juventude), não vou aqui adiantar mais nada, apenas que me apercebi dela bem cedo, talvez por volta dos meus quatro ou cinco anos. Foi também aos cinco anos que adoeci gravemente o que me obrigou a ficar de cama durante um ano e meio (1954 a 1956). Estando de cama, a minha mãe retirou-me do quarto e mudou a minha camita para a sala, de frente para a janela, de onde me chegavam todos os sons de rua que eu passei a identificar facilmente. Não havia riso, choro, ralho, conversa, correria, passos que eu não soubesse de quem eram, assim como sabia bem quem entrava em casa e subia a escada, desde o médico, ao enfermeiro (que vinha quase diariamente) ao meu pai, à minha tia, avós, tias do Alvendre, lavadeira, etc. Não vinham muito a casa os miúdos e miúdas da vizinhança, por causa do perigo de contágio, que de facto existia. Também o meu irmão estava proibido de se chegar ao pé de mim, isto na fase mais aguda da doença. Porém, eu também tinha sido contagiada, bem como outras crianças que comigo andavam no Centro, outras escaparam, como foi o caso do meu irmão. Eu devo ter sido o caso pior porque fui a que demorou mais tempo a curar-se.

Desse período tenho lembranças boas e más; as boas relacionavam-se com as visitas rápidas que o meu pai me fazia (por serem em horário de trabalho), mas que eu ansiava porque ele vinha mimar-me e trazia-me sempre um presentinho, normalmente um daqueles livrinhos de histórias muito pequenos, que eu adorava. Já juntava as letras e conseguia ler alguma coisa porque antes, já andara na “Escola Paga” e no Centro.

“Escola Paga”: não se tratava de uma escola, claro, era simplesmente uma casa onde uma rapariga vizinha recebia os miúdos da vizinhança que ainda não tinham entrado na Escola Primária, para lhes ensinar as primeiras letras, as primeiras contas. Levava-mos de casa um banquinho de madeira, uma ardósia e respectivo ponteiro e o lanche. As mães pagavam qualquer coisa à rapariga, daí o chamarmos à casa dela a “Escola Paga”. Depois fui para o Centro (uma espécie de jardim de infância) que ficava ao pé da Igreja da Misericórdia. Aí passávamos o dia, almoçávamos e lanchávamos e pelas 17.00 h saíamos. Tínhamos o nosso bibe, o nosso cabide, o nosso lugar na mesa. Meninas numa sala, meninos noutra, brincadeiras separadas. Depois do almoço, cada uma sentada na seu lugar à mesa e depois destas terem sido esvaziadas e limpas, deitávamos a cabeça em cima dos braços apoiados no tampo e era suposto que dormíssemos uma sesta. Corriam-se as cortinas e a irmã que nos vigiava não queria ninguém de olhos abertos, a ordem era para dormir. Lembro-me que não dormia, embora tivesse medo de abrir os olhos, mas de vez em quando abria e observava algumas que dormiam e outras não, tal como eu. Recordo-me da Elvira, uma miúda rebelde, que era sempre admoestada e castigada e que, claro, também não dormia, mas ao contrário de mim que ficava muito quieta, ela ficava irrequieta.

Entretanto, afastei-me do que estava a relatar, as boas lembranças, em que também incluo outras aprendizagens que ia fazendo sozinha, como saber ver as horas no relógio da sala, que me ficava mesmo na frente. Por ordens médicas, a minha mãe tinha de me medir a febre várias vezes ao dia e registar num caderninho, então quando me colocava o termómetro debaixo do braço, dizia-me para a chamar quando o ponteiro grande tivesse chegado a tal número. Isto irritava-me muito porque eu não queria que ela me dissesse assim mas antes, “quando for um quarto para as quatro ou oito e dez” pois eu já sabia muito bem ver as horas. Então quando chegava a hora eu berrava logo “já é um quarto para as quatro”, etc… Outra coisa boa eram as histórias que me contavam. Eu quase não comia, juntava tudo no canto da bochecha e, invariavelmente, vomitava. A minha mãe e o resto da família já não sabiam o que fazer, para mais que grande parte da cura dependia de uma boa alimentação. Então o contarem-me histórias ajudava um bocado a que eu me distraísse e permitisse que alguma coisa chegasse ao estômago. Por exaustão, a minha mãe acabou por contratar uma moça, filha do Solinho,(que tinha o mesmo nome que eu) que vinha contar-me histórias ao mesmo tempo que me enfiava pela boca abaixo mais uma colherada.

As más lembranças eram as alturas de febres altas, da prostração, das injeções quase diárias que o enfermeiro snr. Júlio me ia dar e já nem sabia onde, pois as minhas nádegas magras estavam todas picadas, das dores de estômago por vomitar tanto, do amargo das grandes pastilhas da lata da Roche que tinha de engolir, das visitas do médico Dr. António Júlio que me auscultava com aquele objecto frio nas costas e no peito, dos horríveis xaropes caseiros que me faziam engolir e que só o cheiro de quando os faziam já me fazia vómitos, da comida de uma maneira geral que me enjoava, de não me poder levantar para brincar com os outros que ouvia na rua, de ficar muito infeliz quando me apercebi que eles iam começar a Escola Primária e eu não. Aconteceram também alturas de pânico, quando a febre subia imenso e a minha mãe, desesperada, pegava em mim ao colo, toda embrulhada e corria para o Montepio, onde o médico dava consulta. Então ele metia-me na radioscopia (era assim que a minha mãe dizia) que, penso hoje, seria uma forma de fazer um RX uma vez que era encostada a uma grande chapa que parecia de ferro, fria, enquanto o médico dizia para não respirar.

De uma dessas vezes em que fui levada à pressa, nevava imenso e a minha mãe embrulhou-me em tudo o que tinha de agasalho desde camisolas a cobertores e, ajudada por uma prima do meu pai, a Julieta, que estava lá ocasionalmente, entrou no Montepio comigo nos braços. O médico assim que nos viu deu-lhe um ataque de fúria e berrou para a minha mãe que ela era uma irresponsável por me ter levado lá com aquele tempo gelado que tanto me podia afectar. A minha mãe só chorava e ele dizia-lhe que mesmo que me visse vinte vezes ao dia não me podia curar e que se eu tinha piorado devia tê-lo mandado chamar e não ter-me levado lá com aquele tempo. É certo que ouvi depois contar este e outros episódios ao longo da minha vida, mas tenho, desta cena, algumas lembranças, apesar de dizerem que eu delirava com a febre.
Fica a foto que eu acho que deve ter sido tirada pouco antes de adoecer:
Lembro-me que chorei porque não queria tirar a foto, sabe-se lá o porquê… então o fotógrafo deu-me dois bonequinhos, um azul outro rosa e depois disse-me que ia colocá-los um de cada lado, por baixo do vestido, que era para me protegerem. então acalmei e saiu a foto. Tenho a ideia de o vestido ser rosa muito claro.



Antes que tudo se esfume - Dos três primeiros anos de vida


Antes que tudo se esfume - Dos três primeiros anos de vida


Começo por dizer que fiz um rascunho do que pretendia escrever ao abrigo deste tema e, dado que me fui apercebendo que afinal ia ser um bocado longo e povoado de fotos, resolvi dividi-lo em partes, Assim, repetirei sempre o título principal, “Antes que tudo se esfume”, acrescentado de subtítulos. Provavelmente não vou publicar todos no mesmo dia, para não tornar “a coisa” tão pesada.

Para começar, esta primeira parte será dedicada aos meus primeiros três anos de vida, isto porque, ultimamente, penso muito nos meus anos de infância e juventude, passados na minha terra natal. Lembro-me de algumas casas onde vivi, de ruas, episódios, situações, pessoas e, muito também, sentimentos e emoções experimentados. 

Com o que escrevi no texto intitulado “Meados do séc. XX”, já deu para entender que ando assim a modos que saudosista; não sei se é isso, ou melhor, se é só isso, ou antes um sintoma de velhice, de senilidade…

Seja o que for, o facto é que me vêm à memória com frequência uma série de coisas e às vezes não vêm completas e fico muito irritada, pior, alarmada, por sentir essas falhas. Sinto mais isso quando falo com o meu irmão sobre esses tempos, ele tem muito mais memórias, lembra-se de lugares, desta e daquela pessoa, de ex-vizinhos, de amigos (ainda tem vários por lá) e eu, nada!

Como não vou lá desde 2005, o que vou sabendo é através do que ele e a minha cunhada me contam e das fotos que vão tirando de cada vez que lá vão.

Para que não se esfume tudo da minha cabeça, e com o apoio dessas fotos, vou tentar passar para aqui algumas dessas lembranças.

Nasci “nas barbas” da antiga judiaria da cidade e vivi por lá, quase sempre, até aos 19 anos. Mas o meu conhecimento de que aquela zona foi a antiga judiaria é muito recente, naquela época nunca ouvi nada sobre isso, nem na Escola nem em lado algum, e durante vários anos depois, também não.

De há uns tempos para cá, os poderes locais têm dado muita relevância ao facto, a zona tem sido intervencionada e até ocorrem, anualmente, visitas guiadas, encenadas, para os turistas.

Voltando ao local de nascimento, ele ocorreu na Rua de S. Vicente, por detrás da Igreja do mesmo nome, numa casa que sempre ouvi dizer ser a “Casa do Pitaita”…?! Segundo a minha tia Fernanda, o Pitaita era um taberneiro que alugava a parte de cima da taberna, e este nome não passaria de uma alcunha. Quando era pequena, a minha mãe, de cada vez que passávamos por ali, dizia-me que a “casa do Pitaita era aquela…” mas agora já não sei bem qual das casas era essa, mas seguramente é uma dessas que se vêem nas fotos, do lado esquerdo.

       
Rua de S. Vicente)

Quando o meu irmão nasceu dois anos depois, já vivíamos noutra zona da cidade, não incluída na judiaria. Mas ainda hoje sei bem qual era a casa, na Rua Infante D. Henrique, perto da Praça (era assim que chamávamos ao Mercado), porque tenho umas remotas lembranças de um alpendre e de um quintal, e de uma senhora que vivia na casa contígua, a D. Urbana, de que ouvi a minha mãe falar muitas vezes. A dita casa, neste momento, já ruiu, era a que se encostava à que se vê, também em ruína.

Rua Infante D. Henrique
A derrocada do que foi o alpendre e do muro que resguardava um quintal agradável, são evidentes.
 Entretanto a Praça desapareceu, mudou-se para novas instalações e deu lugar às novas instalações da Câmara Municipal, que ficam do outro lado da rua da casa em ruínas.

Câmara Municipal
Dali, os meus pais mudaram-se para uma rua estreita, a Travessa da Estrela (que se chama agora Rua Dr. António Júlio, em homenagem ao nosso médico) perpendicular à Rua do Comércio (do lado direito para quem vem da Misericórdia para a Sé) que vinha dar à Rua Rui de Pina.

As lembranças que tenho dessa casa também são vagas, dois ou três degraus na entrada, para lá da porta mais escadas, uma sala não muito clara, onde a minha mãe se passeava, noites a fio, com o meu irmão ao colo, porque não parava de chorar. O meu pai tentava dormir no quarto, porque ao outro dia tinha de ir trabalhar. Lembro-me mais do desespero da minha mãe, por não saber já o que fazer para o acalmar, do que propriamente da casa.

Não tenho fotos desta rua nem desta casa, ou antes, talvez tenha, em papel, não sei é onde. Se houver hipótese de obter outras, alguma aqui virá parar. Mas tenho uma foto de quando teria perto de três anos, ei-la:
Não reconheço as pessoas à direita, apenas a da esquerda, a Lurditas, e a criança mais pequena, não sei se seria o meu irmão ou o filho dessa senhora.

Das, penúltima e última casas onde vivemos, é que tenho muitas lembranças e algumas bem marcantes. Falarei disso tudo no capítulo seguinte.