E se eu quisesse falar do Quarteto de Alexandria?
Há falta de melhor, começaria por dizer que li aqueles estonteantes quatro livros entre 1971
e 1972, por empréstimo de uma colega de trabalho e amiga. Amiga até aos dias de hoje e que foi sendo igualmente colega quando ambas decidimos mudar o rumo de nossas vidas ao levar a cabo um curso e ingressar na carreira docente. Continuamos colegas na nossa condição de aposentadas.
E o Quarteto?
Quando a conheci, a minha amiga era daquelas pessoas que não deixava ninguém indiferente pela sua exuberância, resposta sempre pronta, um sentido de humor que por vezes era de rir até às lágrimas outras era mais acutilante, irónico e que nem todos aceitavam muito bem ou sequer entendiam. Falava com paixão e às vezes até à exaustão de tudo o que lhe interessava e, verdade seja dita, foi ela que muitas vezes deu a conhecer algum livro, música, filme, etc. ao pessoal (colegas) com quem dividia os dias. Estar calada, não era com ela, se por acaso isso acontecia e nunca por muito tempo, o ambiente ficava tenso. Mas o normal mesmo, era passarmos muito dos nossos dias de trabalho (que era muito, diga-se) em boa disposição e quase sempre na risota.
Posso dizer que eu era o contrário dela. Muito metida na minha concha, enfronhava-me no trabalho sempre a desejar que não dessem por mim. Mas aquela colega mexeu comigo. Percebi que ela era uma pessoa feliz, que tinha tido uma infância e adolescência muito tranquilas mas também divertidas, que era tudo o que eu não tivera.
Fiquei atenta àquela pessoa, tão diferente das outras, e acho que logo a entendi. Então, não raras vezes era eu a única que ria baixinho e com gosto de alguma daquelas suas piadas irónicas que deixava as outras embatucadas, sem saber se a coisa era para rir ou ripostar por desaforo.
Ela também me entendeu e por isso se aproximou.
Travei conhecimento com algumas das personagens do Quarteto, ainda antes de ler o primeiro volume, Justine, e era como se de pessoas reais se tratasse, porque a minha amiga, no seu grande entusiasmo com a obra, cada dia citava uma ou outra como se estivesse estado com elas na véspera; comentava e descrevia cada lugar da misteriosa Alexandria como se por lá tivesse andado também. Devo confessar que ficava por vezes sem entender nada daquelas “tiradas”, daquele mundo, daquele ambiente onde decorria a acção.
Estava desejosa de ler também para, no meu sossego, ver se entendia alguma coisa: que personagens eram aquelas? Que vidas? Que linguagem? Que literatura era aquela? Que género, um romance? Histórias de Vidas?
Não foi preciso que eu pedisse, à minha amiga nem passava pela cabeça que eu não lesse, e rápido, para poder entrar no grupo dos “iniciados” no Quarteto.
Li Justine com o coração aos saltos. Havia um narrador que era também personagem e que fazia a ponte entre dois mundos: o oriente e o ocidente. Havia o amor, a dúvida existencial, as relações intrincadas, o velho poeta da cidade, os poemas dele e, sobretudo, a “febril” Alexandria! Baltasar, o segundo livro, era a mesma história contada por outro, e com que revelações!? O mesmo com Mountolive, mas então surge a história de forma mais objectiva e por fim, assim como uma conclusão mas não o sendo, o magnífico Clea, que nos transporta para outro tempo, o tempo que passara. Nós, os leitores dávamos então conta de como o autor, Lawrence Durrel, nos conduzira pelos labirintos do amor, da paixão, da loucura, da desilusão, da infindável procura do eu, da decadência, da finitude.
Não consegui nessa época ficar assim com tudo mais ou menos “arrumadinho” na cabeça, como me saiu agora. Não. E se está assim mais ou menos arrumadinho também não foi só por mérito meu. Li várias apreciações e comentários depois sobre a obra, tanto para confrontar o que eu pensava com o que outros pensavam, como para me ajudarem a entender melhor. Comprei os livros mais tarde, já em 1973, e não todos juntos. Primeiro o Baltasar e a Clea, ainda com aquelas capas vermelhas, inconfundíveis, com que foram editados pela Ulisseia e, em 1974, a Justine e o Mountolive, da mesma editora mas já com umas capas que deixavam muito a desejar. O tamanho também era diferente, para pior: os primeiros quase podiam ser simpáticos livros de bolso, os segundos já não, capas duras e mais pesadões.
Tive pois ocasião de ir relendo ora um ora outro, aliás coisa que ainda faço agora, e sempre me surpreendo com algo que parece que me escapou, ou algo que tinha entendido de maneira diferente.
Sobre o velho poeta da cidade, tão citado na obra, acabei por ter, anos mais tarde, uma agradável surpresa. Diga-se em abono da verdade que, por falta de perspicácia minha, burrice mesmo, nunca me preocupei em averiguar se o poeta existira mesmo ou apenas na ficção. Ficara sim na minha cabeça, mas ao nível do que me ficara das restantes personagens. Porém, numa das minhas releituras, o nome Cavafis, como é referido em Justine, levou-me a abrir mais os olhos para as notas de roda-pé e então fiquei sem dúvidas: o homem existiu mesmo! Mas, nessa altura ainda não havia internet e, nas livrarias, nunca vira nada dele.
Podia ter averiguado, perguntado, inclusive à minha amiga, mas não o fiz. Sei lá porquê?!
Já não convivíamos diariamente, a nossa profissão era a mesma mas cada uma fora exercê-la para seu lado. Passámos a ver-nos raramente, embora nos mantivéssemos em contacto regular, por telefone. Coisa que ainda hoje sucede e agora também via net.
Bem, mas o facto é que acabei por dar com o poeta, assim, inesperadamente, na livraria ASA, em 2004, ou seja, mais de 30 anos depois. Fiquei emocionada e, ao mesmo tempo irritada comigo por ter sido tão negligente. O livro dos “90 e Mais Quatro Poemas” de Cavafy, com tradução de Jorge de Sena, já ia na 3.ª edição e eu não dera por nada. Senti-me tão estúpida!
Eu já recomendara o Quarteto a algumas pessoas e nunca lhes falara do poeta, da sua existência real.
Considerei então que não passava de uma ignorante.
Restou-me a consolação de que, à última dessas pessoas a quem recomendei a obra, ainda fui a tempo: para me redimir, não só lhe chamei a atenção para os poemas, como lhe ofereci o Livro. Também foi uma surpresa para ela.
Ainda no mesmo ano, encontrei o Livro “Poemas e Prosas” de Konstandinos Kavafis, com tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, editado pela Relógio D’Água. Este tem a particularidade de conter os poemas e prosas em grego e a tradução em português. Oriundo de uma família grega radicada em Constantinopla, Cavafis nasceu porém em Alexandria, no Egipto, em 1863. Segundo Jorge de Sena,o poeta era profundamente grego pela cultura mas muito pouco pela vivência (...). Morreu na mesma cidade em 1933.
Não são muitos os poemas que estão num e noutro livro, mas os que se repetem têm uma tradução diferente. Diferente também a tradução dos que constam do próprio Quarteto.
Vou deixar aqui parte de um desses poemas, inserido no contexto em que surgiu e que envolvia Justine e Nessim:
Estava toda a discordância das suas vidas na medida da angústia que tinham herdado da vida e do século? “Oh!, meu Deus – perguntava ele -, porque não havemos, Justine, de sair desta cidade? Porque não vamos em busca de outros ares menos impregnados do sentimento do exílio e do fracasso?” Os versos do velho poeta voltavam-lhe à memória, amplificados como sob a pressão do pedal de um piano, faziam vibrar a frágil esperança que esta ideia tinha acordado no seu sono tenebroso:
Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah!, então não vês que te desgraças neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada
Nem que tu vás procurá-la nos confins da terra?
Resta acrescentar que o poema se chama mesmo “A Cidade”.
E o Quarteto?
Quando a conheci, a minha amiga era daquelas pessoas que não deixava ninguém indiferente pela sua exuberância, resposta sempre pronta, um sentido de humor que por vezes era de rir até às lágrimas outras era mais acutilante, irónico e que nem todos aceitavam muito bem ou sequer entendiam. Falava com paixão e às vezes até à exaustão de tudo o que lhe interessava e, verdade seja dita, foi ela que muitas vezes deu a conhecer algum livro, música, filme, etc. ao pessoal (colegas) com quem dividia os dias. Estar calada, não era com ela, se por acaso isso acontecia e nunca por muito tempo, o ambiente ficava tenso. Mas o normal mesmo, era passarmos muito dos nossos dias de trabalho (que era muito, diga-se) em boa disposição e quase sempre na risota.
Posso dizer que eu era o contrário dela. Muito metida na minha concha, enfronhava-me no trabalho sempre a desejar que não dessem por mim. Mas aquela colega mexeu comigo. Percebi que ela era uma pessoa feliz, que tinha tido uma infância e adolescência muito tranquilas mas também divertidas, que era tudo o que eu não tivera.
Fiquei atenta àquela pessoa, tão diferente das outras, e acho que logo a entendi. Então, não raras vezes era eu a única que ria baixinho e com gosto de alguma daquelas suas piadas irónicas que deixava as outras embatucadas, sem saber se a coisa era para rir ou ripostar por desaforo.
Ela também me entendeu e por isso se aproximou.
Travei conhecimento com algumas das personagens do Quarteto, ainda antes de ler o primeiro volume, Justine, e era como se de pessoas reais se tratasse, porque a minha amiga, no seu grande entusiasmo com a obra, cada dia citava uma ou outra como se estivesse estado com elas na véspera; comentava e descrevia cada lugar da misteriosa Alexandria como se por lá tivesse andado também. Devo confessar que ficava por vezes sem entender nada daquelas “tiradas”, daquele mundo, daquele ambiente onde decorria a acção.
Estava desejosa de ler também para, no meu sossego, ver se entendia alguma coisa: que personagens eram aquelas? Que vidas? Que linguagem? Que literatura era aquela? Que género, um romance? Histórias de Vidas?
Não foi preciso que eu pedisse, à minha amiga nem passava pela cabeça que eu não lesse, e rápido, para poder entrar no grupo dos “iniciados” no Quarteto.
Li Justine com o coração aos saltos. Havia um narrador que era também personagem e que fazia a ponte entre dois mundos: o oriente e o ocidente. Havia o amor, a dúvida existencial, as relações intrincadas, o velho poeta da cidade, os poemas dele e, sobretudo, a “febril” Alexandria! Baltasar, o segundo livro, era a mesma história contada por outro, e com que revelações!? O mesmo com Mountolive, mas então surge a história de forma mais objectiva e por fim, assim como uma conclusão mas não o sendo, o magnífico Clea, que nos transporta para outro tempo, o tempo que passara. Nós, os leitores dávamos então conta de como o autor, Lawrence Durrel, nos conduzira pelos labirintos do amor, da paixão, da loucura, da desilusão, da infindável procura do eu, da decadência, da finitude.
Não consegui nessa época ficar assim com tudo mais ou menos “arrumadinho” na cabeça, como me saiu agora. Não. E se está assim mais ou menos arrumadinho também não foi só por mérito meu. Li várias apreciações e comentários depois sobre a obra, tanto para confrontar o que eu pensava com o que outros pensavam, como para me ajudarem a entender melhor. Comprei os livros mais tarde, já em 1973, e não todos juntos. Primeiro o Baltasar e a Clea, ainda com aquelas capas vermelhas, inconfundíveis, com que foram editados pela Ulisseia e, em 1974, a Justine e o Mountolive, da mesma editora mas já com umas capas que deixavam muito a desejar. O tamanho também era diferente, para pior: os primeiros quase podiam ser simpáticos livros de bolso, os segundos já não, capas duras e mais pesadões.
Tive pois ocasião de ir relendo ora um ora outro, aliás coisa que ainda faço agora, e sempre me surpreendo com algo que parece que me escapou, ou algo que tinha entendido de maneira diferente.
Sobre o velho poeta da cidade, tão citado na obra, acabei por ter, anos mais tarde, uma agradável surpresa. Diga-se em abono da verdade que, por falta de perspicácia minha, burrice mesmo, nunca me preocupei em averiguar se o poeta existira mesmo ou apenas na ficção. Ficara sim na minha cabeça, mas ao nível do que me ficara das restantes personagens. Porém, numa das minhas releituras, o nome Cavafis, como é referido em Justine, levou-me a abrir mais os olhos para as notas de roda-pé e então fiquei sem dúvidas: o homem existiu mesmo! Mas, nessa altura ainda não havia internet e, nas livrarias, nunca vira nada dele.
Podia ter averiguado, perguntado, inclusive à minha amiga, mas não o fiz. Sei lá porquê?!
Já não convivíamos diariamente, a nossa profissão era a mesma mas cada uma fora exercê-la para seu lado. Passámos a ver-nos raramente, embora nos mantivéssemos em contacto regular, por telefone. Coisa que ainda hoje sucede e agora também via net.
Bem, mas o facto é que acabei por dar com o poeta, assim, inesperadamente, na livraria ASA, em 2004, ou seja, mais de 30 anos depois. Fiquei emocionada e, ao mesmo tempo irritada comigo por ter sido tão negligente. O livro dos “90 e Mais Quatro Poemas” de Cavafy, com tradução de Jorge de Sena, já ia na 3.ª edição e eu não dera por nada. Senti-me tão estúpida!
Eu já recomendara o Quarteto a algumas pessoas e nunca lhes falara do poeta, da sua existência real.
Considerei então que não passava de uma ignorante.
Restou-me a consolação de que, à última dessas pessoas a quem recomendei a obra, ainda fui a tempo: para me redimir, não só lhe chamei a atenção para os poemas, como lhe ofereci o Livro. Também foi uma surpresa para ela.
Ainda no mesmo ano, encontrei o Livro “Poemas e Prosas” de Konstandinos Kavafis, com tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, editado pela Relógio D’Água. Este tem a particularidade de conter os poemas e prosas em grego e a tradução em português. Oriundo de uma família grega radicada em Constantinopla, Cavafis nasceu porém em Alexandria, no Egipto, em 1863. Segundo Jorge de Sena,o poeta era profundamente grego pela cultura mas muito pouco pela vivência (...). Morreu na mesma cidade em 1933.
Não são muitos os poemas que estão num e noutro livro, mas os que se repetem têm uma tradução diferente. Diferente também a tradução dos que constam do próprio Quarteto.
Vou deixar aqui parte de um desses poemas, inserido no contexto em que surgiu e que envolvia Justine e Nessim:
Estava toda a discordância das suas vidas na medida da angústia que tinham herdado da vida e do século? “Oh!, meu Deus – perguntava ele -, porque não havemos, Justine, de sair desta cidade? Porque não vamos em busca de outros ares menos impregnados do sentimento do exílio e do fracasso?” Os versos do velho poeta voltavam-lhe à memória, amplificados como sob a pressão do pedal de um piano, faziam vibrar a frágil esperança que esta ideia tinha acordado no seu sono tenebroso:
Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah!, então não vês que te desgraças neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada
Nem que tu vás procurá-la nos confins da terra?
Resta acrescentar que o poema se chama mesmo “A Cidade”.