terça-feira, 21 de abril de 2020

Nunca se recupera o tempo perdido, mas...

Pode sempre voltar-se no tempo, se a memória ainda não nos atraiçoa.
Tenho-me dedicado, neste blogue, e tal como o nome com que o baptizei indica, a escrever sobre o que recordo do meu passado. Às vezes vêm-me à cabeça lembranças, ocorrências, de que não sei  precisar a data, por isso não as relatei aqui.
Um dia destes, ao falar com uma amiga, ambas a recordar os tempos idos da escola, uma no Alentejo e outra na Beira Alta, contei-lhe o desgosto e decepção que tive na quarta-classe e então lembrei-me que abordei o assunto no capítulo da escola primária, mas não o relatei. É chegada a altura.

Aqui estou eu, com colegas, penso que em Maio de 1960, ainda com os meus dez anos. Foi a festa da Comunhão Solene, na Sé.

Estávamos no início desse mês de Maio de 1960 (se não baralhei as datas), no terceiro período da minha quarta-classe. A minha e outras mães de colegas, foram chamadas à escola pela nossa professora D. Carmelina. Era uma coisa inusitada, pois não era costume os pais irem à escola, mas lá foram. Então a D. Carmelina, depois de muitos rodeios, acabou por dizer às mães que seria talvez melhor que nos ficássemos pelo exame da quarta-classe e que, no ano seguinte, ela se encarregaria de nos preparar para a admissão ao Liceu e Escola; segundo ela, éramos ainda muito pequenas para enfrentar o ciclo seguinte. As mães não ficaram nada contentes com esta situação, recusaram e, dado que ela não estava disposta a preparar-nos para o exame de admissão, então disseram-lhe que teria de nos deixar sair mais cedo da escola para podermos ir obter essa preparação com outra professora. E assim foi. Contactaram uma professora que morava para os lados da Dorna, a D. Irene e lá íamos para casa dela, a partir das 15,00 h. Dessas aulas, lembro-me que, além de nós, andava lá também um miúdo que era de uma quinta e nos levava uns morangos grandes e muito saborosos. Foi essa a melhor recordação que me ficou, porque tudo o que se seguiu, trouxe-me muito desgosto. Era normal que os alunos se inscrevessem para o exame de admissão tanto ao Liceu como à Escola Comercial e Industrial, mas essa professora D. Irene, convenceu a minha mãe (por acaso também Irene), que não valia a pena esse gasto, uma vez que eu estava bem preparada e não teria problemas no exame para o Liceu. E depois sucedeu o que nem ela nem eu esperávamos: reprovei. Lembro-me de ir ao Liceu ver as pautas e nem queria acreditar naquela terrível palavra escrita a vermelho, a seguir ao meu nome. Desatei num pranto e vim de lá embora quase a correr pela Praça Velha abaixo e um miúdo vizinho, colega, a que chamávamos o Capelo, atrás de mim a segurar-me, a consolar-me e a dizer-me que não chorasse. Vinha em sentido contrário a minha prima Maria Estela, e foi a ela que o Capelo me entregou para me ir levar a casa porque eu já nem me segurava nas pernas. Não tardou muito que a professora Irene aparecesse, muito pesarosa e aflita, a dizer que não compreendia o que se teria passado, pois pelo que ela corrigira nos meus rascunhos, tudo estaria bem. Entretanto, tratou de insistir com a minha mãe para me ir inscrever na admissão à Escola, mesmo tendo de pagar a multa de atraso e que ela arcaria com a despesa pois a culpa fora dela de não me ter proposto de início. A minha mãe não queria, eu também não, muito menos o meu pai, que já não tinha querido que eu fizesse o exame ao Liceu. Mas a professora levou a dela avante e lá fui. E ainda bem. Aqueles dias foram febris, eu estava tão nervosa, parecia-me que a cabeça estava vazia. Foi nesse pequeno intervalo entre um exame e outro a fazer revisões da matéria (principalmente na matemática), que eu a professora percebemos o que é que terá corrido mal no Liceu: era costume no exame, darem-nos duas folhas de rascunho para aí fazer as contas, esboços ou escrevermos, antes de irmos para as "sagradas e imaculadas"  folhas da prova, que não podiam ter riscos ou borrões. Enquanto estávamos nos rascunhos, os vigilantes iam dando informação sobre o tempo que restava, para não nos atrasarmos. Na prova de matemática, a pior para mim, redobrei os cuidados e, tal como a professora aconselhara, resolvi primeiro os problemas em que não senti dificuldade e deixei para o fim os que não consegui à primeira. Com tudo já feito e com a pressão do tempo que faltava, sei que comecei a passar para a folha de prova os problemas pela ordem em que os tinha no rascunho, e aí é que foi o grande erro. Quem corrigiu, deparou com os resultados todos errados e não teve em conta a desordem em que estavam. A professora Irene, que tinha visto a minha folha de rascunho e sabia que eu tinha resolvido bem cada um dos problemas, é que deu pela coisa ...enfim!
Fiz o exame de admissão à Escola, correu tudo bem e entrei para o primeiro ano do segundo ciclo. Nada se perdeu, mas doeu!


Esta foto data do inicio de Agosto 1961, quase a fazer doze anos. Já tinha concluído com êxito o 1.º ano na Escola Comercial e vim passar as férias a casa dos meus tios, em Almada. Estou com a minha tia e a minha tia-avó, no Jardim Zoológico.


Da minha professora D. Carmelina, de que eu tanto gostava, é que me ficou amarga recordação. Pensando nesse último ano de escola, já tenho pensado se algo se passaria com ela, pois lembro-me que andava um bocado irritadiça. Não me lembro de alguma vez me ter dado alguma  reguada ou algum puxão de orelhas, ou uma repreensão por algum trabalho mal feito ou alguma desatenção, como a vi fazer a outras colegas. Por isso, foi com muita estranheza e mágoa que, precisamente nesse último ano, ela me tenha dado a mim e a outras uma reguada, pelo seguinte motivo: nas carteiras, onde nos sentávamos duas a duas, havia na parte estreita e plana, lugar para um tinteiro, para as canetas de aparos e para o mata-borrão. Uma das miúdas que estava atrás de mim e da minha companheira, que se chamava Lúcia (era a Lúcia da montanha), tirou o tinteiro do sítio, este entornou-se e ela, aflita, arrancou uma  folha do caderno para limpar a tinta; entretanto espirrou, ficou toda ranhosa e onde é que ela se foi assoar? À folha com que limpara a tinta e o resultado foi que ficou com o nariz todo pintado. A companheira dela mal continha o riso, nós olhámos para trás e quando vimos a Lúcia naquela figura, também nos rimos mas muito à socapa para a professora não dar conta, mas ela deu. Levantou-se para ver o que se passava e logo de régua na mão e então correu a fila toda à reguada. Fiquei muito melindrada, senti-me muito infeliz, cheguei a casa e nem sabia como contar à minha mãe. Como era de esperar, a minha mãe deu razão à professora e ralhou-me.
D. Carmelina, lembro-me muito bem dela, era muito bonita. E também me lembro da professora da sala ao lado, que era a D. Olímpia de quem também gostava muito, quando me via, fazia-me sempre uma festa e dizia-me que tinha uns olhos muito bonitos.
Recentemente, soube através de uma amizade do Facebook, que a D. Carmelina ainda é viva e vai sempre à Missa do meio-dia à Misericórdia. Há uns anos, numa ida à cidade, penso que a vislumbrei também numa Missa, mas em São Vicente. Se está viva ainda, já dever ter idade bem avançada, quem sabe, se houver oprtunidade, ainda a volto a ver...
Só mais uma coisa: a tal amizade do Facebook, é uma das minhas colegas da escola e vizinha, que viveu comigo estes acontecimentos e com quem muito brinquei, mas ela não sabe quem eu sou, porque no Facebook, não dá para alguém me identificar e também ainda não quis fazê-lo.
21 de Abril de 2020, em plena quarentena, por causa do Covid-19.