segunda-feira, 23 de junho de 2014


Antes que tudo se esfume - Travessa do Pardal

Aquando da vinda da tal amiga “venezuelana”, a minha família já se tinha mudado da Rua do Amparo para fora da muralha da cidade, ainda que, a casa para onde fomos, estivesse quase colada a ela.

A mudança foi para a Travessa do Pardal e ocorreu, penso, em 1960, quando eu tinha 11 anos.

A casa para onde fomos  situava-se, como já disse, fora da muralha. A Travessa do Pardal, há  muitos anos que mudou de nome, tornou-se avenida (quem diria!?), mas isso aconteceu quando eu e a minha família mais próxima já nos tínhamos mudado, há muito tempo, aqui para o sul.

As mudanças não foram só no nome, a travessa que só tinha saída para os baldios (torreão e reinalda), alongou-se bastante e veio dar acesso ao centro da cidade, mais propriamente ao largo da Misericórdia.

Nesta Travessa existiam, praticamente só de um lado, cinco prédios, sendo o meu, o antepenúltimo. O prédio, composto de dois rés-do-chão, primeiro e segundo andares, era dos meus avós paternos. O meu avó terá comprado o imóvel quando o mesmo não ia além do primeiro andar e terá depois feito construir o segundo, que era o que habitava. Tenho uma vaga ideia de ter ouvido dizer que os meus avós terão morado em algum dos apartamentos até ter sido contruído o último, porém eu, sempre os conheci morando neste e foi para este que mudámos quando eles, por sua vez, se mudaram para casa da filha, minha tia, que morava em Almada. A minha tia tinha casado e, depois de morar dois anos com os sogros em Lisboa (sogros que eram tios), mudou-se com o marido (meu tio e meu primo) para Almada. Quis que os pais fossem viver com eles e eles lá foram, ou antes, lá vieram.

Do outro lado da Travessa, só tínhamos um muro que delimitava o quintal da casa do então pároco da cidade, snr. Padre Isidro. A casa paroquial distinguia-se das outras pelo porte, pelo alpendre, pelo tamanho. O caseiro que tomava conta daquela propriedade, tinha tudo bem arranjado, cultivado e florido. Havia um poço para irrigação de todo o terreno. Mais junto ao muro, grassava um silvado, para dissuadir qualquer um de saltar para dentro do quintal; porém, quando alguma bola ia parar lá dentro, o silvado e os pedregulhos nunca impediram a garotada de saltar para lá e resgatar a bola, mesmo que o caseiro viesse atrás dele com uma vara ou fizesse queixa ao pároco e por sua vez aos pais. Mas, que me lembre, nunca nada de muito sério se passou com estas investidas.

Os meus avós tinham decidido ir viver com a filha e o genro (meus tios), que entretanto se tinham mudado de Lisboa para uma casa nova em Almada. Todas estas decisões de mudança foram difíceis: os meus avós, ou antes, o meu avô, não queria ir para casa da filha e genro e só aceitou ir quando ficou garantido que nós nos mudávamos para a casa que eles deixavam. Outras resistências à mudança foram também da minha avó e da minha mãe: resumindo, a minha avó queria que fossemos na condição de pagar uma renda, o meu avô não queria esse pagamento mas a minha mãe impôs-se e disse que sim senhor, pagaria renda ou então não mudávamos.
Bem, saímos da Rua do Amparo e lá nos fomos encaixar na nova casa, que embora não fosse pequena e desse para todos, sentíamos que na outra nos mexíamos melhor. Mas, adaptámo-nos, que remédio.

Connosco, mudaram-se também uma senhora viúva, a Sra.. Alzira e suas duas filhas, Fatinha e Dorzinha, que já eram nossas hóspedes na Rua do Amparo. Lembro-me que estranhei a mudança porque tudo ficou diferente, estávamos mais apertados, embora a casa, como já disse, não fosse pequena, tinha três quartos, duas salas, um hall razoável, uma casa de banho, duas varandas, uma despensa e um sobrado.
Quando a filha mais velha da senhora Alzira se casou e depois a outra acabou os estudos, saíram e ficámos mais à vontade, mas por pouco tempo, no ano seguinte, entraram mais hóspedes (estudantes), por isso nunca deixámos de, ao todo, sermos quase sempre oito ou nove pessoas em casa. Vivi nessa casa até 22 de Julho de 1969, o meu irmão até 1 Janeiro de 1970 e os meus pais ainda por lá ficaram até 31 de Julho de 1971.

Quando me mudei para esta casa, a minha figura era esta:
Para chegar lá acima, havia dois lances de escadas, sendo o último em forma de caracol.

A Travessa do Pardal, era um lugar simpático, amplo, onde podíamos jogar à bola, correr e, melhor que tudo, mesmo na entrada da "Reinalda" e do "Torreão", para onde íamos tantas e tantas vezes. Lamento muito não ter fotos desse espaço, que se espraiava em declive até um pequeno ribeiro ou regato.
A casa paroquial é a que se segue; infelizmente não tenho outra em que se veja o muro e o quintal, porque tudo foi demolido para novas construções:


 Como se percebe, ao lado direito já aparece uma outra casa, branca, que ocupou grande parte do quintal e fez estreitar a antiga travessa. Esta foto é 1997, mas posteriormente a isso já andou em obras de conservação, e já está agora bem melhor, assim, quase parecia uma ruína. Do lado esquerdo, ainda se vê parte da grande árvore que estava no recinto de recreio da Escola, brinquei muitas vezes à sombra dela, agora já não existe.
Digamos que esta casa está no início da travessa, que se estendia para a direita, o que se vê para lá dela, eram, na altura, algumas quintas.
A minha casa era a antepenúltima da travessa, seguia-se o Torreão, que era um matagal com vários arbustos e árvores, ladeado pela Reinada que era um terreno em declive e na sua maior parte, relvado.
Para a Reinalda, entrávamos por uma abertura forçada feita na ponta direita do muro. Descia-se por ali um pouco às escorregadelas, até que, com o tempo, e de tanto pisar o terreno, apareceram uma espécie de degraus em terra batida. As mulheres que iam para lavar roupa lá nos ribeiros mais ao fundo ou iam levar as viandas aos cortelhos dos porcos, tinham de se equilibrar bem, para não rebolarem por ali abaixo. Por falar em rebolar, e eu acho que até já referi isso aí algures noutro escrito, era o que mais gozo nos dava fazer no Verão, rebolar na relva desde cá de cima até lá baixo ao regato.

Voltando ao meu prédio, à casa no último piso, direi que é lá que "moram" as minhas últimas recordações da vida que tive na cidade, até aos 19 anos.
Da minha vizinhança, também me lembro de algumas coisas, por exemplo, no primeiro prédio, chegaram a morar uns primos meus, por parte do meu pai, mas não tenho grandes lembranças, nem do resto das pessoas que lá viviam. Num rés-do-chão ( que não sei se fazia parte desse prédio ou não...?), viveu um casal de que me lembro bem: o homem era cobrador da luz ou da água (?), a mulher estava quase sempre grávida, tinha duas ou três crianças pequenas e quando estava quase para nascer mais uma, a mulher e a criança morreram. Foi uma tragédia naquela família. Veio uma irmã da mulher viver para casa do cunhado, para tomar conta das crianças mas as coisas não corriam nada bem. Entretanto mudaram-se para outro rés-do-chão ao lado (antes uma cave), e não tardou nada que a cunhada ficasse grávida, nasceram crianças, pelo menos duas de que eu me lembre, e que, segundo corria, ela deu para adopção. Dos sobrinhos tratava bem mal, lembro-me de uma menina linda que eu tanto queria levar para casa, nessa altura eu não tinha a noção do que isso implicava. Bem, a família acabou por se mudar para outra cidade e nunca mais se soube deles.
Nessa cave onde viveram, morou antes um casal e uma filha, que eram pessoas muito discretas. Também recebiam hóspedes como nós, e foi de lá que vieram morar para nossa casa mais duas irmãs.
O casal entretanto mudou-se para outro local da cidade. Por cima desta cave, havia mais duas famílias, a do 1.º andar era constituída por seis pessoas, os pais e quatro filhos. Eram "os maus da fita" lá da rua, toda a gente os tratava pela "família rato", ou "os ratos", não que tivessem esse nome, mas porque ninguém se queria aproximar deles. O rapaz mais velho era mau, batia em todos os miúdos da rua, a miúda mais velha era intriguista e intrometida, dos mais pequenos já não me lembro bem. Entretanto, para a casa onde se deu a tal tragédia da morte da mãe e criança, veio viver uma família do Porto (ou de perto), com que nos dávamos bem, lembro-me da filha mais velha, a Berta, com quem gostava de jogar à bola e conversar. Depois também se foram dali, lá mais para baixo, para a dorna. Por cima da família dos ratos, vivia, no último piso, gente que não era da cidade, eram de alguma aldeia próxima e estavam ali para estudar. Só me lembro de uma das raparigas, a Ernestina. Era este prédio, que tinha um quintal, que confinava com o meu. Hoje, está em ruínas.
Por falta de fotos, a não ser a que vai abaixo, resta-me, por agora descrever o resto da rua: seguia-se ao meu prédio o da professora Emília, cujas paredes e quintal confinavam com o nosso. Por fim, a casa da Snra. Elvira, que estava mais recuada porque para lá dos portões havia um bocado de quintal, quintal esse que depois se estendia bastante para a esquerda, a confinar com o Torreão, e que era pertença da minha avó materna e mais tarde, da minha tia Fernanda. Excluindo a minha tia, as pessoas referidas já morreram e as casas passaram  para herdeiros, caso da filha da Snra. Elvira, e a outra foi vendida a outra família, que fez obras e ergueu mais um andar de modo a que ficou quase à altura do nosso.
Esta foto dá alguma ideia do que era a minha travessa, mesmo já com alterações:

O meu prédio tem uma pessoa à porta, era meu tio, infelizmente já partiu.
Depois do meu prédio, estão os tais dois, o que está praticamente junto e o outro que se esconde atrás da árvore. Seguia-se um muro alto, onde havia uma pequena porta, que abrigava o tal quintal que foi da minha tia Fernanda. Para cá do meu prédio, há um quintal ao abandono que fazia parte do prédio contíguo, igualmente ao abandono. Foi no piso térreo que moraram pessoas de que já falei acima. Por fim, o prédio de que só se vê metade mas é o que faz esquina, está mais bem conservado, aqui, no piso de cima moraram os referidos primos meus (de que pouco me lembro, mas cujos filhos e netos conheço bem), e a porta do rés-do-chão era da morada onde sucedeu a tal desgraça de que também já falei.
Percebe-se que hoje não é mais uma travessa, cujo final dava seguimento ao Torreão, que nesta parte não era habitado, embora tivesse casas acima da muralha, que davam para outras ruas. Agora vê-se que a travessa tem continuidade, deu lugar a uma avenida, que vai directamente ao centro da cidade, ao Largo da Misericórdia.
Voltando  à minha casa no último andar, refiro que tem uma varanda estreita mas a toda a largura do prédio. Nas traseiras existe outra varanda, que era coberta por um telheiro. Hoje em dia tem uma marquise. Esta varanda das traseiras da casa, dá para os quintais das casas da Rua do Amparo, de onde tínhamos saído. Isso fazia com tivesse sempre presente essa casa e esse pedaço de quintal e que o contacto com alguma da anterior vizinhança nunca se perdesse.
Foi nesta casa que iniciei a nova etapa escolar, ou seja, tinha deixado a Escola Primária e entrado na Escola Comercial e Industrial da cidade, mais conhecida como Escola Técnica. Penso que já contei, noutro texto, o porquê de ter entrado nesta Escola e não no Liceu, por isso não vou repetir.
As minhas alegrias e tristezas, começaram verdadeiramente aqui, ou seja, nesta casa e na Escola Técnica.