O meu Presépio
De facto, este Presépio já tem mais de 65 anos. Tinha eu 4 meses de idade quando me foi oferecido pelos meus padrinhos que, vivendo no Brasil, estavam de visita à família naquele ano.
Penso que não terá passado um só ano em que o Presépio não tenha sido armado e, várias vezes, em casas diferentes. Que eu saiba, pelo menos em meia dúzia delas, sendo que, nos últimos vinte e tal anos, tenha por morada a casa do meu irmão, na Parede. Isto porque, sendo a minha sobrinha a única criança da minha família mais próxima, era natural que assim passasse a ser.
As maiores recordações que tenho do Presépio vêm da penúltima casa em que vivi, na minha terra. Ao contrário das outras casas, em que, provavelmente, nem sempre foi montado no mesmo sítio, naquela casa e durante os anos em que lá vivemos, o sítio do Presépio foi sempre o mesmo, ou seja, num recanto do espaçoso e comprido corredor que fazia a ligação entre uma espécie de "duas casas" e que por isso tinha várias divisões (quartos/salas), duas cozinhas e duas entradas para o mesmo quintal, que assentava na muralha da cidade.
Naquela época, a preparação para a montagem do Presépio, levava o seu tempo e por vezes surgiam dificuldades. O pinheiro era um pinheiro natural e demorava por vezes a encontrar, nas redondezas, um que fosse viçoso e do tamanho ideal (eu vivia numa cidade...). Dessa tarefa era mais o meu pai que se incumbia, mas dos musgos, éramos nós, eu e o meu irmão e também a garotada da vizinhança, que tratávamos. E arranjá-los, não era "pera-doce"; não porque faltassem, mas porque, em anos de muita neve, ficavam escondidos por baixo e era o cabo dos trabalhos conseguir chegar-lhes.
Eu vivia próximo de uma das saídas da cidade, portanto havia terrenos baldios mesmo ali, como a Reinalda e o Torreão, de que já tive oportunidade de falar noutra mensagem deste blogue. Bastava sair de casa e não precisavamos de nos afastar muito para, naqueles muros dos últimos quintais e nos barrocos desses baldios, encontrarmos o que precisávamos. Levávamos um cesto de verga, uma pá de ferro daquelas das braseiras e umas facas, e devotávamo-nos à tarefa de retirar a neve, escarafunchar e, com muito jeito, cortar os pedaços de musgo do maior tamanho possível. Enchíamos o cesto e lá íamos para casa, onde subíamos as escadas a correr para dispor os musgos no espaço já delimitado por jornais ou mantas velhas e voltávamos rapidamente à rua para trazer mais enquanto a neve ou o gelo não voltassem a cobrir o terreno desbravado.
O frio parecia golpear-nos o rosto e os dedos, mesmo enluvados, mas depois de um bocado de actividade, até já sentíamos calor e íamos tirando as luvas e os gorros.
Com o musgo todo colocado, restava armar uma cabana por baixo do pinheiro e para isso nós tínhamos o objecto ideal, que era a tacoila (joelheira) em madeira, que servia para, quando lavávamos o soallho, nos ajoelharmos dentro e assim não nos molharmos. Ora esse objecto servia na perfeição, desde que bem coberto e forrado com musgo. Depois estendíamos uma prata, que se moldava em curva para, por cima, colocar a pequena ponte de barro e assim imitar um ribeiro. Também não faltavam, a enfeitar, umas pedrinhas do rio, que havíamos trazido do rio Mondego quando, nas suas margens, fazíamos piqueniques, no Verão. As figuras eram dispostas de acordo com o estatuto que tinham e também, claro está, com a forma que nos parecesse mais bonita e sempre de maneira que diferenciasse o Presépio de um ano para o outro. Para imitar os caminhos, colocávamos uns carreiros de serradura, que o meu irmão ia buscar à serração. O Pinheiro, tinha invaravelmente muito algodão em rama espalhado pelas suas agulhas verdes para imitar os fiapos de neve, umas bolinhas coloridas que se compravam, outras feitas de pratas coloridas e, às vezes, as próprias pinhas ainda pequenas e verdes também. Estrategicamente, fazia-se pender uma Estrela prateada no alto do pinheiro e, por cima da canana, lá figurava o Anjo. Também não faltava alguma iluminação eléctrica, e aí era também o meu pai que se encarregava de fazer umas ligações de modo a termos uma lâmpada a incidir na Estrela, o resto era a poder de velinhas pequenas, vermelhas, que espetávamos no musgo, em redor da Sagrada Família. Não sei se terá sido o último Presépio que se montou naquela casa, mas tenho uma vaga ideia de que sim, porque no ano seguinte já nos tínhamos mudado para última casa onde morei na cidade, que era a casa onde tinham morado os meus avós paternos.
A lembrança que tenho é que, naquele ano (talvez 1959 ?) e naquela casa, montei o Presépio a chorar, a chorar de dor, porque estava doente. Não conseguia nem sequer sentar-me, porque me tinham aparecido uns furúnculos nas pernas e um, particularmente doloroso, numa das nádegas. Era comum, naquela época, as pessoas terem furúnculos, não faço ideia a que é que isso se devia, só sei que nunca mais me lembro de ter tido depois e, com os anos, parece que cairam em "desuso".
Esse Natal foi triste para mim porque me sentia muito mal, mas quase todos os Natais da minha infância e adolescência foram pouco alegres também, mas por outras razões que não vêm agora a propósito mencionar.
O Presépio sofreu, ao longo do tempo, alguns pequenos danos, como por exemplo a perna quebrada do Menino Jesus; a este episódio está associada a teimosia do meu irmão e minha também, em querermos ambos pegar nele para o depositar na sua "caminha" de palha. Como ainda agora, o Menino Jesus não fazia parte do Presépio logo que este era montado, aguardava-se a noite de Natal para o colocar lá e também, claro, umas meias penduradas no pinheiro, para os presentes.
Os presentes! De que é que constavam os aguardados presentes? Livros, jogos, brinquedos?
Nada disso. Os presentes eram as camisolas interiores e as meias, luvas e casacos de malha, tricotados pela avó. Mas havia, invariavelmente, umas outras prendas que eram, afinal, aquelas por que mais ansiavámos: os lápis com pratas de várias cores, os ratinhos, os sininhos e outras miniaturas, tudo em chocolate.
Uma maravilha!
Mais tarde, pelo que me lembro, também começámos a receber uns brinquedos ou objectos úteis e vistosos, como uma pasta para a Escola. Esses brinquedos, não eram qualquer coisa, eram de facto únicos, ou seja, na vizinhança ninguém tinha igual. Recebíamos essas prendas do Banco Espítrito Santo, onde o meu pai era funcionário. Mas depressa acabaram essas ricas prendas porque, entretanto, crescemos e deixámos de ter direito. Perdeu-se tudo? Não, a mim, ainda me resta o boneco, tipo bébé-chorão, que trazia biberon e tudo e abria e fechava uns lindos olhos azuis... como os da imagem do nosso Menino Jesus.